Arte e literatura periférica : da antropofagia manifesta ao método antropofágico

Art et littérature périphérique: de l'anthropophagie manifeste à la méthode anthropophagique

 

Resumo
Este trabalho pretende analisar os manifestos redigidos por artistas considerados pertencentes à “literatura marginal” ou “literatura periférica”: Manifesto de Abertura: Literatura Marginal - Terrorismo literário (2005), de Ferréz, Manifesto da Antropofagia Periférica (2007), de Sérgio Vaz, Manifesto Encruzilhador de Caminhos ou Manifestação da Literatura Divergente (2012), de Nelson Maca e o Manifesto do olhar visceral (2007), escrito por vários autores ligados ao vídeo, a fim de perceber o processo antropofágico a que se propõem desde sua concepção. A metodologia de assimilação e fusão de diversos campos artísticos parece ser o caminho escolhido pelos artistas para dar voz e vez àqueles que estão, por assim dizer, “fora do centro” da literatura canônica. Devorar, deglutir, ruminar, fundir são alguns dos verbos de ordem expressos nessas produções contemporâneas pluriformes que utilizam as novas tecnologias como meio difusor de sua criação literária. Música, artes plásticas, poesia, prosa, etc. são alguns dos ingredientes encontrados nas obras e textos advindos da multiplicidade devorada pelos escritores que, como afirma o compositor e escritor gaúcho Vitor Ramil ao refletir sobre a sua própria identidade, “não” estão “à margem de um centro, mas no centro de uma outra história”.

Palavras-chave: Arte; Antropofagia; Literatura periférica; Literatura marginal; Manifestos.

Résumé
Ce travail se propose d'analyser les manifestes écrits par des artistes considérés comme appartenant à la « littérature marginale » ou à la « littérature périphérique » : Manifesto de Abertura: Literatura Marginal - Terrorismo literário (2005), par Ferréz, Manifesto da Antropofagia Periférica (2007), par Sérgio Vaz, Manifesto Encruzilhador de Caminhos ou Manifestação da Literatura Divergente (2012), par Nelson Maca et le Manifesto do olhar visceral (2007), travail collectif, écrit par plusieurs auteurs liés à la vidéo, afin de comprendre le processus anthropophagique qu'ils proposent depuis sa conception. La méthodologie d'assimilation et de fusion des différents champs artistiques semble être la voie choisie par les artistes pour se faire entendre et se tourner vers ceux qui sont, pour ainsi dire, « hors du centre » de la littérature canonique. Dévorer, avaler, ruminer, fusionner sont des verbes d'ordre exprimés dans ces productions multiformes contemporaines qui utilisent les nouvelles technologies comme moyen de diffuser leur création littéraire. Musique, arts visuels, poésie, prose, etc. sont quelques-uns des ingrédients trouvés dans les œuvres et les textes issus de la multiplicité dévorée par les écrivains qui, comme le dit le compositeur et écrivain brésilien Vitor Ramil en réfléchissant sur sa propre identité, « ne sont pas au bord d'un centre, mais au centre d’une autre histoire ».

Mots-clés: Art; Anthropophagie; Littérature périphérique; Littérature marginale; Manifestes.

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Sheila Katiane Staudt  

Doutora em Letras
IFRS

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Arte e literatura  periférica : da antropofagia manifesta ao método antropofágico[i]

“Quem aprende uma arte, que nela se exerça”
Adriana Lisboa,
Um beijo de colombina

Considerações iniciais
 

     Isolamento não rima com arte. A necessidade do contato, seja ele corporal, visual, musical, virtual, é parte constituinte do artista enquanto “antena da raça” (Pound, 1970 : 77), isto é, um ser capaz de traduzir as emoções e sensações que acontecem ao seu redor em expressões artísticas várias. Ao pensar a antropofagia, a partir dos moldes oswaldianos[1], percebe-se que não há caminho mais apropriado para definir a metodologia empregada pelas literaturas consideradas “marginais” ou “periféricas” da contemporaneidade. A forma plural com que as produções artísticas são concebidas e externadas vai ao encontro do nosso próprio tempo: heterogêneo, múltiplo, líquido[2], impossível de ser captado no seu todo, mas passível de ser interpretado se visto aos pedaços e em suas partes. Além disso, a necessidade da elaboração de manifestos sinaliza para um comportamento reacionário, cuja intenção primeira está em expressar o novo, o diferente, tornar público algo até então pouco divulgado e, quiçá, incompreendido.

Impactar, persuadir, polemizar são algumas premências impressas nesses textos-manifestos. O escritor Oswald de Andrade, em seu Manifesto Antropófago, de 1928, afirma que “Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. [...] Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” (Andrade apud Teles, 1976). Tal assertiva parece coincidir com o projeto pensado por Ferréz, Sérgio Vaz, Nelson Maca e outros artistas em seus manifestos, pois como foi pensado no início do século XX, há uma tentativa de identificação e/ou unificação entre os escritores, além de menções e metáforas ao longo dos textos que enfatizam o processo de criação propriamente dito. O descontentamento dos artistas e o desejo de revolução no campo das artes parece ser a força motriz que orienta a escrita desses manifestos antropofágicos.  

A natureza múltipla da arte literária composta pela bagagem de conhecimento dos artistas, bem como de suas vivências pessoais e leituras de mundo, dá mostras da “Intertextualidade” que funciona “como modus operandi primordial do processo criativo”[3]. Para além do simples ato de “manifestar” a sua arte e intitular seus escritos de “Manifesto”, como fez Oswald no início do século XX, esses artistas periféricos e/ou marginais expressam ali uma espécie de receita de seu fazer literário, no qual uma mistura de diversos campos artísticos encontra-se imbricados, posto que “só me interessa o que não é meu. [...] Lei do antropófago” (Andrade apud Teles, 1976).

A antropofagia, por sua vez, é a estratégia utilizada nos diferentes planos de criação e ganha evidência nesses manifestos, uma vez que a devoração é marca constituinte dos quatro textos que servem de corpus para esse trabalho, ao mesmo tempo em que “reagir contra o silêncio e contra a arte fabricada, artificial, paralisante” [...] permitindo que “a mensagem [possa] chegar a seu destino e mobilizar o interlocutor” (Medeiros, 2020 : 227) é o objetivo desses artistas por meio de sua literatura. São eles: Manifesto de Abertura – Literatura Marginal – Terrorismo literário (2005), de Ferréz, Manifesto da Antropofagia Periférica (2007), de Sérgio Vaz, Manifesto Encruzilhador de Caminhos ou Manifestação da Literatura Divergente (2012), de Nelson Maca e o Manifesto do olhar visceral (2007), escrito por vários autores ligados ao vídeo, modo de escrita coletiva que perpassa o trabalho de todos os escritores aqui em análise. Intentamos aqui perceber o processo antropofágico a que os mesmos se propõem desde sua concepção, partindo também da devoração dos textos com vistas a entender o método empregado nessas composições.

I. Das margens

     Ao pensarmos na palavra margem, temos em mente, antes de tudo, um centro. Parece que precisamos de rótulos para compreendermos tudo ao nosso redor. Estar de fora, ao lado, à margem significa, essencialmente, estar longe do centro. A literatura dita “marginal” encontra sua expressão primeira no início dos anos 2000, com o escritor Ferréz, que autointitula suas obras como “marginais”. A partir de 2005, percebe-se a coexistência de outra nomenclatura: “literatura periférica” ou “literatura de periferia”. Originária a partir dos saraus da Cooperifa – Cooperativa Cultural da Periferia – organizada pelo poeta Sérgio Vaz e outros artistas da periferia paulistana, a arte da periferia vem ganhando espaço e vez na cena nacional, às vezes, precisando de um aval estrangeiro[4] para, a posteriori, ser aceita na própria terra natal.

O músico, compositor e escritor gaúcho Vitor Ramil também percebe-se à margem de um centro. A sua pluralidade artística já aponta para um certo deslocamento, uma vez que ele compõe, toca e também escreve romances e ensaios. Sua arte plural, entretanto, restringe-se geograficamente, uma vez que mesmo para o extremo sul do país, sua terra natal, ele ainda é pouco conhecido. 

Em seu texto “A estética do frio”[5], escrito para a Conferência de Genebra, em 2003, cujo tema era Porto Alegre, un autre Brésil, o escritor mostra com detalhes como sente-se deslocado geográfica e literariamente dos demais artistas brasileiros. A temática por ele perseguida parece destoar da grande maioria dos temas da música, bem como da literatura brasileira dos seus contemporâneos, fato que o faz refletir sobre sua posição “marginal” em relação a um universo literário “central” tão diverso daquele que o identifica e o singulariza. Ao tentar entender a sua própria identidade dentro de um país tão heterogêneo, Ramil afirma que no Sul do país: “Sentíamo-nos os mais diferentes em um país feito de diferenças. Mas como éramos? De que forma nos expressávamos mais completa e verdadeiramente? O escritor argentino Jorge Luís Borges [...] escreveu: a arte deve ser como um espelho que nos revela a nossa própria face” (Ramil, 2004 : 14).

Nesse sentido, o reconhecimento da própria dissonância dentro de uma dissonância ainda maior, em se tratando de Brasil, faz com que o autor comece a pensar em outras possibilidades para sua expressão artística ao asseverar que, possivelmente, ele e seus demais conterrâneos são “a confluência de três culturas, encontro de frialdade e tropicalidade. Qual é a base da nossa criação e da nossa identidade se não essa? Não estamos à margem de um centro, mas no centro de uma outra história” (RAMIL, 2004 : 28, grifos nossos). Após essa assertiva ramiliana, há uma ruptura de perspectiva no que tange aos conceitos de “centro” e “margem”. Estar ‘fora’ para alguns pode não significar estar excluído ou marginalizado, mas sim estar dentro de um novo grupo que compartilha sensações e sentimentos afins.

Com isso, ao repensar sua própria arte diversa de uma “cor local” e, portanto, distante das aquarelas de um país predominantemente tropical, Ramil sente-se pertencente a um “Brasil frio”, com características quase europeias e bem mais próximas das fronteiras sulistas brasileiras, isto é, perto dos vizinhos uruguaios e argentinos, condição esta que lhe faz (re)desenhar mentalmente um outro centro e não uma exclusão do centro já demarcado pelo cânone. A criação de um novo estilo musical chamado “ramilonga”, combinação da milonga com o seu próprio sobrenome (Ramil + milonga = ramilonga), agregando algo pessoal à sua invenção, faz com que sua arte musical se diferencie dos demais ritmos brasileiros. Sua arte literária também retrata a neblina, as baixas temperaturas e os costumes típicos do Sul do país muito semelhantes aos dos hermanos do Uruguai e da Argentina, como reafirma Ramil: “Temos uma brasilidade particular, que carrega muito dos países platinos. Discutir isso contribui para nossa construção de identidade”[6]. Reconhecer quem somos e aceitar as diferenças ressalta, sobretudo, a singularidade de que é feita a pluralidade. Trazer essa ponderação de um artista brasileiro contemporâneo, também considerado à margem, agrega sobremaneira à discussão proposta nesse ensaio e reitera a necessidade aventada pelo pesquisador Flávio Carneiro (2005) de se analisar o contemporâneo de dentro do mesmo contemporâneo, mesmo que o analista lide, constantemente, com a instabilidade e com a dúvida.

Em outro texto intitulado “Nós os outros”, Ramil (2017) assevera : “Eu não era absolutamente “definido”, e meu universo era “plural”. O mundo que eu queria apreender era múltiplo, excessivo”. De certa forma, esse sentimento de pluralidade, ao abranger muitas artes, está em consonância com essas novas vozes do século XXI, uma vez que a música, a poesia escrita e falada, as artes plásticas, o teatro, a dança, etc. fazem parte da produção heterogênea dos artistas conhecidos e autoproclamados “periféricos” ou “marginais”. Na esteira desse problema, encontram-se os autores da (des)conhecida “Literatura Periférica” também deslocados desde sua nomeação. De acordo com Fernando Villarraga Eslava (2004 : 39-40, grifos nossos), o movimento é:

integrado por autores que, em virtude de sua origem ou condição social, se apresentam como favelados, ex-presidiários, detentos, desempregados, índios, negros, nordestinos, rappers, membros de comunidades de bairro ou de pescadores, grafiteiros, enfim, como seres integrados no cotidiano violento ou miserável do nada glamouroso mundo periférico. Daí que o marginal dessa literatura leve ao centro da abordagem crítica o problema que gera a implementação de um adjetivo tão carregado de valor sociológico, pois, como é óbvio gramaticalmente, dá ao substantivo que acompanha uma dimensão assaz diferenciada da que costuma ter entre as elites letradas.

A denominação casada aos espaços onde nasceram tais expressões ditas “periféricas”, estigmatizadas pela origem – locus pouco compreendido aos olhos do centro – tem o intuito de dar voz e vez àqueles que não tinham visibilidade em meio a vozes já consagradas, bem como tornar visíveis aqueles espaços urbanos berços de arte e cultura. Ser ou não ser o centro depende de onde fala o observador. Margem e centro: termos que já não dão conta da multiplicidade espaço-temporal propiciada pelo advento das tecnologias digitais, responsáveis pela fragilidade em se delinear as fronteiras difusas na contemporaneidade, sucumbem à liquidez dos paradigmas pré-concebidos, uma vez que a mobilidade e a transição de um ponto a outro possibilitaram  inúmeras rupturas, entre elas a migração e intersecção de diversos gêneros artístico-textuais característica própria da modernidade líquida de que nos fala Zygmunt Bauman.

Ainda sobre essa questão, é mister rever as classificações pré-estabelecidas pois, segundo a pesquisadora Vera Lúcia Cardoso Medeiros (2020 : 217):

O estudo da produção literária que está fora do centro – aqui me refiro sobretudo à condição social, que determina o distanciamento geográfico e cultural –, a partir de suas próprias estruturas dinâmicas, permite repensar nossos conceitos e critérios de valoração, rever tradições e revisar o que, afinal, entendemos por literatura brasileira. Se desprezarmos esta via, reforçamos o papel da literatura como “[...] mecanismo de distinção e hierarquização social, deixando de lado suas potencialidades como discurso desestabilizador e contraditório” (Dalcastagnè, 2012 : 12)         

Sendo assim, romper com a ideia restritiva e seletiva de literatura como um dos principais meios para se distinguir e hierarquizar a sociedade é apenas uma das urgências se quisermos ampliar o quadro acerca do que está sendo produzido em termos de literatura brasileira contemporânea. Para a pesquisadora Regina Dalcastagnè (2012 : 07), “cada vez mais, autores e críticos literários se movimentam na cena literária em busca de espaço – e de poder, o poder de falar com legitimidade ou de legitimar aquele que fala”, é pela reafirmação dos espaços de poder – aqueles já conquistados ou pela conquista de novos espaços – que essa batalha se concretiza. Tanto escritores quanto críticos tornam-se heróis incansáveis quando o tema é redemocratizar a literatura enquanto manifestação cultural de todas e para todas as vozes.   

Contudo, Alfredo Bosi (1986 : 06) apresenta-nos outro entendimento sobre a mesma problemática, para ele “na sociedade capitalista avançada, não há nenhuma obra que, publicada, se possa dizer inteiramente marginal. O seu produzir-se, circular e consumir-se acabam sempre, de um modo ou outro, caindo no mercado cultural, dragão de mil bocas [...] a recuperar toda sorte de malditos”. A tentativa de se manter à margem, para Bosi, já não existe se pensarmos as práticas de consumo impetradas pelo sistema capitalista. Tudo se torna mercadoria no líquido mercado moderno, o qual “favorece a leveza e a velocidade. E também a novidade e a variedade (Bauman, 2004 : 67). 

Todavia, reafirmar a singularidade inerente dessa arte multifacetada nos espaços virtuais é tarefa diária de muitos desses novos artistas. Advindos de bairros de periferia e cidades não-capitais, essas vozes nascidas literalmente à margem da sociedade necessitam (sobre)viver em meio à multidão de outras vozes já consagradas na era digital[7], haja vista a intensa utilização do universo tecnológico e virtual como a principal forma de divulgação dessa profícua criação artística produzida pelos artistas ditos “marginais” ou “periféricos”. Desse modo, as diferentes perspectivas adotadas a fim de entender essa nomenclatura – o viés ramiliano, o viés da elite letrada, o viés de Bosi, entre outras possibilidades – ensaiam (re)classificar os protagonistas, contudo, buscar entender as produções narrativas contemporâneas “em suas intersecções e descompassos, experimentando a diversidade babilônica dos espaços representados” (Melo, 2013: 13) torna-se um exercício imperativo ao enveredar pela riqueza estética e poética dos textos ditos periféricos.

II. Da literatura periférica: nos rastros da antropofagia

     O instinto de devoração artística impresso na produção considerada “marginal” ou “periférica” é fato. Entendemos aqui o ato devorador como a fusão das mais diferentes artes como o rap, a poesia, a literatura, a dança, o teatro, os slams, entre outras, característica que confere uma singularidade ímpar a essas produções nascidas à margem impregnando-as de uma essência múltipla e heterogênea.

 Os artistas da Semana de Arte Moderna de 1922 ao remeterem sua arte às origens, às práticas dos povos nativos brasileiros antropófagos tentaram definir suas expressões artísticas que se misturavam às raízes populares, africanas e, sobretudo, indígenas. Conforme o estudioso Antonio Candido (2006 : 171):

a atitude dosescritores de 1922 [...] representa um esforço para retirar à literatura o caráter de classe, transformando-a em bem comum a todos. Daí o seu populismo [...]. Mergulharam no folclore, na herança africana e ameríndia, na arte popular, no caboclo, no proletário. [...] O admirável TUPI OR NOT TUPI, do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade — mestre incomparável das fórmulas lapidares —, resume todo este processo, de decidida incorporação da riqueza profunda do povo, da herança total do país, na estilização erudita da literatura.

De modo análogo se comportam os artistas periféricos ou marginais, uma vez que adentrar os problemas do cotidiano das favelas, enfatizando a rotina hercúlea das camadas populares que (sobre)vivem em espaços, muitas vezes, hostis é o exercício de resistência diária dos próprios artistas que passa a ser representado por meio da arte literária. Resistir e reexistir são os verbos de ordem dos mais diversos gêneros literários escritos por esses “artistas-cidadãos” (Vaz, 2007). O próprio ato de escrita de manifestos vai ao encontro dessa tentativa de chamar a atenção para a ampliação do acesso à literatura por sujeitos assujeitados socialmente e privados, desde sempre, do contato com os bens culturais, artísticos e imateriais do seu país.

Ferréz e Paulo Lins[8] protagonizam o início de uma vasta criação literária que passa a ganhar visibilidade no século XXI aos olhos da Academia, bem como de críticos literários. O próprio desabafo de Ferréz – “morar dentro do tema é complicado” (Ferréz apud Coronel, 2013: 53) – sinaliza para os percalços no modo de representação literária dessa nova leva de escritores marginais e/ou periféricos, resistentes em sua tentativa de reexistência diária. Resistir como forma de (re)existir através da arte parece ser a forma encontrada por esses escritores com vistas a dar visibilidade à sua expressão artístico-literária.

Com vistas a compreender o processo de criação da “Literatura Marginal” e/ou “Periférica”, lançaremos mão do conceito de antropofagia, propriamente dito, como estratégia norteadora do ato de escrever desses artistas, uma vez que:

A criação se insinua justamente na prática da transfiguração, da interiorização, da apropriação, das redes dos possíveis, na verdade, na visada do outro como alimento. Ao absorver o texto alheio, um texto se torna também aquele outro, num processo de assimilação muito bem detectado por Valéry. (Lima, Silva, 2014 : 71, grifos nossos)

O rito antropofágico faz parte do ato de escrever e une os escritores que deixam transparecer em seus textos ideias ou vestígios de suas leituras prévias, gostos musicais ou vivências pessoais. A oralidade ganha vez e voz nos textos periféricos, além da manifestação de um desejo de seguirem caminhos independentes dos trilhados até o momento, já que ficcionalizam seus dramas e personificam os locais por eles habitados – os ghettos, as favelas, as periferias, as quebradas.    

A possibilidade de se associar os manifestos desses autores periféricos com os Manifestos de Oswald de Andrade foi aventada por Heloísa Buarque de Hollanda (apud Cardoso, 2020 : 226) no prefácio do livro Literatura, pão e poesia escrito por Sérgio Vaz, em 2011, a fim de se pensar os rumos tomados pela arte literária e pela sociedade brasileira no intervalo de quase um século. Ao cotejar os dois manifestos – o de Vaz e o de Oswald –, a estudiosa Vera Cardoso (2020 : 226) destaca:


a clareza e a objetividade da linguagem empregada por Sérgio Vaz, características as quais [...] permitem que o artista se comunique com sua comunidade, local que fornece palavras, expressões e imagens constituintes de seu estilo. Enquanto o manifesto do modernista Oswald de Andrade passeia por nomes e signos de vários campos da cultura ocidental, o de Vaz menciona objetos e situações familiares.    

Apesar da diferença de estilos entre os dois escritores antropófagos, separados por um século, nota-se o instinto de absorção cultural no que tange ao fazer literário de ambos. A devoração de elementos caros a cada artista denota o interesse de incorporar à sua arte símbolos portadores de significado para si e para o público almejado. Os estratagemas pensados no instante de se escrever um manifesto ou um texto literário advêm das concepções do sujeito enquanto parte da sociedade e capaz de modificar o seu entorno por meio da sua arte.

Em se tratando dos manifestos escritos no início do século XXI, o pioneirismo de Ferréz entre os artistas marginais e/ou periféricos é fato. A escrita de seu Manifesto de abertura: Literatura Marginal - Terrorismo Literário, de 2005, retrata, sobretudo, a (des)preocupação com a rigidez formal, desmistificando a linguagem dos escritores “marginais”, pois, para ele, o que realmente importa é ter a coragem de se mostrar em meio a gama de escritores contemporâneos, muitos deles já consagrados pela crítica:   

Quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão, a regra é só uma, mostrar as caras. Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto.
A própria linguagem margeando e não os da margem, marginalizando e não os marginalizados, rocha na areia do capitalismo.
O sonho não é seguir o padrão, Não é ser o empregado que virou o patrão, não isso não, aqui ninguém quer humilhar, pagar migalhas nem pensar, nós sabemos a dor por recebê-las.[9] (Ferréz, 2005, grifos nossos)

A intenção proposta na ruptura com as regras linguísticas pré-concebidas dialoga com a estética oswaldiana exposta desde o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos” (Andrade apud Teles, 1976), rompendo assim com o padrão formal da língua “culta” para ser o avesso do padrão, a pura e natural oposição, pois de acordo com Ferréz (2005): “Somos o contra sua opinião [...]”. Sendo assim, ser “o avesso do avesso do avesso do avesso”[10], tal qual poetizou Caetano, é um dos objetivos primeiros desses artistas, já que rubricar em prol da rigidez formal na fluidez e liquidez de um sistema excludente como é o capitalista serve como a metáfora perfeita que questiona as concepções sócio, político e econômicas em vigor na atual conjuntura global – opressora e repressora ao mesmo tempo: “nós sabemos a dor por recebê-las” (Ferréz, 2005). É a partir da liberdade no uso da língua que a resistência se fixa ao explicar “como é essa literatura marginal publicada em livros. Ela é honrada, ela é autêntica e nem por morarmos perto do lixo, fazemos parte dele, merecemos o melhor, pois já sofremos demais” (Ferréz, 2005). Esses “quixotes da periferia” (Vaz, 2011 : 37) provocam o público com as armas que possuem, trazendo a voz de uma coletividade que vive dentro da favela para o interior de seus textos.

Ao afirmar “Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto” (Ferréz, 2005, grifos nossos), percebe-se a tentativa de ser autossuficiente em um processo simultâneo de autoassimilação e autoaceitação, caminhos que possibilitam o autoconhecimento. Tal método pode ser entendido como uma leitura de si e do seu mundo pelo olhar do próprio artista marginal ou periférico, antes registrado pelas lentes de terceiros tanto na música, quanto na literatura, como no cinema, etc., mas que passam a ser compreendidos através do exercício da própria arte. Devorar-se, autoaceitar-se, fazer a sua própria selfie são marcas antropofágicas: ao (re)conhecer, no seu mundo, signos tão ou mais significantes que os já existentes, reconhece-se a preciosidade do próprio eu que passa a ser outro através da introspecção de si mesmo... No caso da escrita de si ou ao “tirar o próprio retrato”, como afirma Ferréz, há um duplo movimento envolvido: representar a si mesmo de dentro do local de onde se fala.

Estar contra, colocar-se do outro lado, estar em oposição ao sistema vigente são atitudes que dialogam com as palavras de Oswald de Andrade, o qual já havia contrariado Vieira, Anchieta, as imposições religiosas e toda a dominação tanto ideológica quanto linguística imposta pelos portugueses:

Contra todas as catequeses. [...]
Contra o Padre Vieira. [...]
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
Contra as elites vegetais. [...]
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: - É mentira muitas vezes repetida.
(Andrade apud Teles, 1976, sic)

A contrariedade exposta por meio de manifestações literárias no formato de “manifesto” sinaliza, de algum modo, a insatisfação de grupos de artistas com a arte seletista, segregacionista, sem brechas para o novo ou o diferente. Ferréz coloca-se contra as práticas de escrita vigentes, bem como é contrário à dominação das massas, cuja força castradora e alienadora do pensamento das minorias, minorias estas que, a seu ver, correspondem à maioria do povo brasileiro – abnegada do acesso à cultura há mais de cinco séculos:

Jogando contra a massificação que domina e aliena cada vez mais os assim chamados por eles de “excluídos sociais” e para nos certificar que o povo da periferia/favela/gueto tenha sua colocação na história, e que não fique mais 500 anos jogado no limbo cultural de um país que tem nojo de sua própria cultura, a literatura marginal se faz presente para representar a cultura de um povo, composto de minorias, mas em seu todo uma maioria. (Ferréz, 2005)

A garantia de dar voz e vez àqueles que foram suprimidos das páginas histórico-literárias seja pela forma mais livre de escrita, seja pelo lugar de onde falam – locais tão marginalizados quanto os seus habitantes –, vem sendo o intuito desses escritores pioneiros em suas palavras-manifestas, cujos ecos espalham-se e espelham-se em outras formas artísticas afins que, desde as vanguardas, apontam para a dualidade de pensamentos e a peleia constante entre opressor e oprimido:     

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura - ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. [...] Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, - o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.
A nossa independência ainda não foi proclamada. [...]
(Andrade apud Teles, 1976, grifos nossos)

A espera por uma liberdade artístico-literária que ainda não veio é manifesta há quase um século. Ser independente linguística e artisticamente de culturas impostas e artificiais parece ser a luta travada por escritores brasileiros e por tantos outros povos colonizados e predestinados a uma língua, hábitos, costumes que não lhes são naturais. A eterna batalha entre criador e sua criatura remonta aos primórdios da humanidade e reverbera na arte, cuja razão de existir é transgredir.  

A convicção de estar à margem e ser ‘marginal’ parece ser intrínseca no pensamento desse coletivo de escritores que reivindicam o adjetivo tal qual uma insígnia presente na pele e externada em sua arte:  

Somos mais, somos aquele que faz a cultura, falem que não somos marginais, nos tirem o pouco que sobrou, até o nome, já não escolhemos o sobrenome, deixamos para os donos da casa grande escolher por nós, deixamos eles marcarem nossas peles, porque teríamos espaço para um movimento literário? [...]
Estamos na rua loco, estamos na favela, no campo, no bar, nos viadutos, e somos marginais mas antes somos literatura, e isso vocês podem negar, podem fechar os olhos, virarem as costas, mas como já disse, continuaremos aqui, assim como o muro social invisível que divide esse país.
(Ferréz, 2005)

A literatura produzida na e pela margem ecoa como um grito nunca antes ouvido pelos “donos da casa grande”, como disse Ferréz, porém está e sempre esteve em todo o lugar, em todos os cantos de um país que aprendeu a segregar, a rotular, a dividir ao invés de congregar e partilhar saberes e conhecimentos únicos capazes de enriquecer sobremaneira uma nação. Antropófagos natos, esses escritores “antenas da raça” (Pound, 1970 : 77) apreenderam e devoraram tudo e todos ao seu redor para produzir uma nova forma de expressão artística, na qual os invisíveis das cidades começam, paulatinamente, a se (re)conhecer, haja vista a fértil produção dos textos periféricos, sua socialização pelos saraus, redes sociais e slams, como também sua internacionalização. Para além das divisões étnico-sociais, tidas como “invisíveis” por Ferréz, a promessa de resistência, de permanência e de reexistência começam a coabitar em espaços antes exclusivos de uma elite letrada acostumada a lançar mão da concepção “dominante de literatura” como “um espaço privilegiado de expressão, que corresponde aos modos de manifestação de alguns grupos, não de outros, o que significa que determinadas produções estão excluídas de antemão” (Dalcastagnè, 2012 : 12).        

O poeta Sérgio Vaz, por sua vez, escreveu, em 2007, o Manifesto da Antropofagia Periférica, o qual se inicia e se encerra com o mesmo verbo[11] utilizado por Oswald de Andrade: “A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor” (Vaz, 2007). A ideia de universalização que une os artistas periféricos vai ao encontro da proposta oswaldiana do início do século XX. A antropofagia se manifesta através das escolhas verbais e lexicais do poeta que apontam para a absorção de elementos artísticos com vistas a produzir um “artista-cidadão”:      

É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão.
Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades.
Um artista a serviço da comunidade, do país. Que armado da verdade, por si só exercita a revolução.
(Vaz, 2007, grifos nossos)

Sendo assim, a necessidade imperativa de “sugar da arte” ou “exercitar a revolução” ou ainda “revolucionar” vai ao encontro dos ideais antropofágicos dos índios antropófagos que também absorvem do outro aquilo que serve para melhorá-los e torná-los mais fortes.   

A antropofagia é uma constante, uma vez que inúmeras metáforas relacionadas ao trabalho desses artistas rotulados “marginais” e/ou “periféricos” passam a ser tematizadas e problematizadas, bem como a referência às diferentes artes que são devoradas com vistas à criação artístico-literária. Os ingredientes que compõem a essência poética dos textos ditos “periféricos” advêm de um mélange artistique através da qual nasce um produto autêntico e singular:

              Da poesia periférica que brota na porta
do bar.
              Do teatro que não vem do “ter ou não
ter...”.
              Do cinema real que transmite ilusão.
              Das Artes Plásticas, que, de concreto,
quer substituir os barracos de
              madeiras.
              Da Dança que desafoga no lago dos
cisnes.
              Da Música que não embala os
adormecidos.
              Da Literatura das ruas despertando nas
calçadas.
              A Periferia unida, no centro de todas as
coisas.
(Vaz, 2007)

Matéria-prima exposta e sobreposta dando origem à pluralidade artística. Processo e composição. Devoração e criação. Estratégias que propiciam ao leitor um maior entendimento sobre questões e problemas próprios dessas comunidades periféricas, bem como das escolhas feitas pelo escritor no instante de pensar seu ato criador. É da combinação de diferentes domínios artísticos como a dança, a música, as artes plásticas, etc. que brota uma literatura singular desses espaços que emanam vida em constante transmutação. A concepção ramiliana de centro X margem parece fazer sentido nesse manifesto, pois a Periferia ocupa o “centro de todas as coisas”, como poetiza Vaz no último verso. Não há como achar-se à margem quando se “está no centro de uma outra história” (Ramil, 2004 : 28).

Durante os preparativos para a Semana de Arte Moderna da Periferia[12], núcleos ligados ao audiovisual da zona sul de São Paulo elaboraram um manifesto sobre o circuito alternativo de produção, distribuição e exibição audiovisual. Apesar de ser o menor entre os quatro manifestos aqui estudados, o Manifesto do olhar visceral, de 2007, também mostra traços e signos antropofágicos desde o seu título, fato que sinaliza para a técnica empregada nesse meio artístico:

Sou viela, ciranda ou morro.
O corpo. As vísceras.
[...]
Nossa estética é a da procura, a do resgate, a do encontro, da experimentação.
Olhar quilombola que ofusca e risca a imagem dos borba-gatos da colonização cultural.
Sabotagem na linha de reprodução de estereótipos.
Celebração do personagem vivo, do personagem-alma, da periferia viva.
Em busca da cinemateca perdida criamos nossos cineclubes-avessos em bares, escadões, becos, nossas quebradas...
Periferias como centro. Periferia do universo, do mundo, do país, da cidade, dialogando com nossos sentimentos (grifos nossos).[13]

 A interiorização da arte está posta. O corpo, as vísceras, o âmago, o sentimento do artista em prol de sua criação que vai de encontro aos modelos pré-concebidos e estereotipados e busca locais, por assim dizer, “avessos” para divulgar essa nova expressão artística. O olhar visceral ou o olhar quilombola parece ser o órgão de introspecção que absorve todo e qualquer movimento com vistas à produção de uma arte visual ímpar, composta sobretudo por meio da experimentação, registrando, em primeiro plano, o personagem vivo, o personagem-alma que é a verdadeira periferia, local de onde prolifera a imaginação e serve como o amálgama de toda a criação:

O vídeo-artesão na linha de montagem feita de organismo vivo; gerado da necessidade de representar o universo que nos circunda.
O nosso vídeo se faz à imagem esculpida do puro caos ordenado no calor da noção de quem não só filma, mas se filma ao narrar sua própria história pela lente fria da câmera.

A pluralidade do universo circundante desses artistas clama por representação, haja vista os parcos materiais que abordam a periferia e seus atores sociais. Temas esses que são esquecidos pela literatura canônica, segundo estudos da pesquisadora Regina Dalcastagnè[14].  Além de focalizar o outro, é imperativo que a câmera grave o seu narrador/criador ao longo desse processo, estratégia que indica uma autoassimilação do artista em seu percurso criativo.  

Por outro lado, o Manifesto Encruzilhador de Caminhos ou Manifestação da Literatura Divergente, escrito e divulgado pelo poeta Nelson Maca, de Salvador, não se restringe apenas aos escritores moradores das periferias urbanas. Lançado em São Paulo, em setembro de 2012, este manifesto foi referendado por autores da periferia, como Allan da Rosa, rappers como GOG, mas também autores reconhecidos como Glauco Matoso e Marcelino Freire, além de coletivos como o Poesia Maloquerista e o Zona Autônoma da Palavra (ZAP) que flertam com a periferia. Sendo o mais longo dos quatro manifestos, o texto tenta diferenciar dois parentes muito próximos: a “Literatura Divergente” e a “Literatura Convergente”. Para Maca (2012), “essa Manifestação da Literatura Divergente, primordialmente, quer se aproximar do desejo íntimo de postura crítica de seu agente, o autor divergente – que antecede seu texto propriamente dito – e de sua respectiva textualidade, a Literatura Convergente”.

Basicamente, os conceitos elaborados pelo poeta referem-se à convergência entre as temáticas periféricas compartilhadas pelos autores ditos “marginais”. Em contrapartida, todos ‘divergem’ da literatura conhecida e referida como “canônica” e, por isso, também inserem-se na Literatura Divergente. Portanto, ser, ao mesmo tempo, divergente e convergente já sinaliza para um status múltiplo, pluriforme, heterogêneo desde sua origem, uma vez que “as Literaturas Convergentes podem tanto desobedecer a modelos no interior das linguagens escritas como desrespeitar fronteiras, fundindo-as com a fala, a prosa, o canto, a mímica, a dança, a pintura – e o que mais for – em hibridismo fundadores” (Maca, 2012, grifos nossos). Nesta passagem, o escritor reitera a quebra de fronteiras, fator que facilita a incorporação das mais variadas expressões artísticas, tornando o produto híbrido e heterogêneo desde sua tenra concepção.

Uma bela e poética imagem do procedimento antropofágico encontramos no trecho: “Arquipélagos que, vez ou outra, se chocam, se fragmentam, redividem, se afundam ou se fundem. É essa a metáfora paisagística possível, para se visualizar a beleza da Literatura Divergente e seus operadores concretos complementares: as Literaturas Convergentes” (Maca, 2012, grifos nossos). Aqui, as diferenças aglutinam-se, convergem para trazer à luz a Literatura Divergente, composta pelos mais diversos campos artísticos complexificando ainda mais a forma combinada com imagens do grafite, fotografias, fanzines, trechos de músicas, etc.

Uma das características da literatura marginal ou periférica é a presença marcante da oralidade. A riqueza do consagrado romance roseano Grande sertão: veredas está, principalmente, em sua forma, a qual privilegia o registro oral. Os narradores definidos e consagrados por Walter Benjamin são mestres na arte de contar suas histórias, seja pela vivência e sabedoria do trabalhador sedentário, seja pelas peripécias do marinheiro mercante, os quais fazem uso do relato oral para externar suas experiências. A literatura periférica, por sua vez, prima, acima de tudo, pela expressão oral como objeto primeiro de sua arte multiforme:

O primeiro e grande passo da Literatura Divergente é a reintrodução categórica da oralidade e outros “desvios de conduta” como elementos prenhes de potencialidades criadoras na literatura. Mesmo relevando-se a oralidade como valor fecundo na elaboração da textualidade divergente, o binômio escrita-oralidade ainda não encerra as possibilidades híbridas da Literatura Divergente. [...] A modalidade escrita e a oral podem tanto caminhar lado a lado como estabelecer uma cumplicidade criativa-expressiva com outras sonoridades, musicalidades, plasticidades, corporalidades, gestualidades… (Maca, 2012, grifos nossos)

A antropofagia fica explícita no texto a partir da fusão primordial entre oralidade e escrita nas produções ditas “Divergentes”, as quais podem (e devem!) se aglutinar a outros campos artísticos como a música, os movimentos corporais, a arte plástica, e assim por diante. A ênfase dada à oralidade e a outros “desvios de conduta” faz lembrar do grande texto roseano que trouxe o falar característico do sertão do Brasil a um patamar de excelência no que se refere à arte literária. Desviar-se dos textos ditos “canônicos” e procurar, quiçá, outros centros está em consonância com a proposta ramiliana ao alocar-se “no centro de uma outra história” (Ramil, 2004:28):

[...] a razão de ser da postura literária divergente é o desvio dos cânones circunstanciais e conjunturais pré-estabelecidos e que se arrogam uma verdade universal com disfarces de naturalidade. [...]
A Literatura Divergente, no momento imediato de sua conformação enquanto linguagem (Literatura Convergente), não almeja ocupar um centro hegemônico qualquer, mas sim desrespeitá-lo. O descentramento do centro – paralelamente à desmarginalização da margem – é a substância de combustão que a impulsiona. (Maca, 2012, grifos nossos)

Des-marginalizar, des-centralizar, des-construir são palavras-chaves aos artistas periféricos que buscam espaço para mostrar a arte oriunda de uma “convergência divergente”, rica, multiforme e singular, como toda e qualquer expressão artística nascida em um tempo plural, líquido e caleidoscópico, no qual estamos todos submersos. A leitura e representação do universo contemporâneo requer novas técnicas que dialoguem ainda com os novos processos digitais e tecnológicos dinâmicos e velozes, os quais redimensionam as interações humanas em todos os sentidos.   

Com uma linguagem informal em sintonia com a oralidade preconizada nos quatro manifestos, os artistas exprimem seus ideais criativos, ao mesmo tempo em que reforçam a convergência entre as artes divergentes, como nos explica Maca (2012, grifos nossos):  

As Literaturas Convergentes assim estão denominadas aqui porque convergem para um plano ideológico e/ou estético, como já foi dito. Muita lábia tem se gastado dentro e fora da academia, perto e longe da quebrada, na tentativa de se estabelecer os limites, aproximações e distanciamentos entre essas convergências. Muita política, muita economia, muita tabela de cossenos e muita malandragem se infiltram nesse “meu pirão primeiro”.

Deste modo, rastros e restos da antropofagia ficam explícitos e corroboram a ideia cunhada no Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, exposta e explícita desde a paráfrase shakespeariana “Tupy or not tupy” de que “a gênese de uma obra, literária ou não, envolve um procedimento de apropriação quase natural, pois não se imagina que um texto surja do nada, sem referenciais anteriores, até porque, antes de criarem, os escritores são excelentes leitores, tanto na quantidade como na qualidade.” (Lima, Silva, 2014 : 66). Manifestar a antropofagia, bem como seguir a metodologia oswaldiana da devoração intercalam-se nos manifestos aqui analisados. A necessidade de ter vez e voz numa era em que todas as vozes têm um lugar de expressão (as redes sociais) parece impor a manifestação artística e, para realizar o feito, nada mais justo que recorrer ao passado, reatualizando o método antropofágico para os padrões contemporâneos. Antropofagia manifesta e o método do antropófago são perceptíveis na tessitura desses manifestos que iniciam o século XXI com a promessa de renovação da arte literária a partir da quebra de fronteiras sejam elas visíveis ou invisíveis.

Considerações finais

     Perseguir o processo para conseguir elucidar o fazer literário desses artistas brasileiros contemporâneos foi o que intentamos nesse trabalho. Partindo das concepções do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, é nítido o trabalho com a linguagem e as escolhas feitas no ato de criação desses textos ditos “marginais” e/ou “periféricos” que se valeram da matéria-prima de diversos campos artísticos devorada, ruminada e regurgitada em uma nova forma de arte, exercício um tanto quanto árduo, uma vez que falar e escrever sobre a matéria viva presente no cotidiano desses artistas abrem feridas que nem sempre foram cicatrizadas.

Antropofagia, (re)criação, ruptura foram alguns dos ingredientes encontrados ao longo dos quatro manifestos literários analisados em nossa pesquisa. Talvez, e se houver, qualquer estranhamento a partir do contato com os textos chamados “marginais” ou “periféricos” a causa pode advir da enorme diversidade característica intrínseca de tais composições. Uma possível fórmula pode ser desenhada, considerando a pluralidade pela qual tais textos são formados:

Quadro 1 : Fórmula dos textos periféricos. S. Staudt.

ORALIDADE + MÚSICA + DANÇA + POESIA + GRAFITE + CINEMA + FOTOGRAFIA + TEATRO + FANZINES + SLAM ... =  LITERATURA PERIFÉRICA / MARGINAL

Para além da escrita inspirada pela antropofagia, tais observações acerca do processo criativo, como ocupante de um papel ativo e coparticipativo, direcionam o olhar do leitor às astúcias empregadas pelos artistas, muitas vezes não captadas no instante da leitura. Estar “no centro de uma outra história” – como reiterou Ramil – une essas vozes que criam narrativas ímpares as quais passam a ser escritas e compreendidas no século XXI de forma mais disseminada, graças ao advento das novas tecnologias de comunicação, ferramentas estas que se tornam aliadas na resistência e reexistência da arte.

Literatura marginal, periférica, divergente, convergente, etc. são ainda esboços de uma tentativa de nomear essa multiplicidade de sensações, olhares e espaços que se misturam em prol de uma arte múltipla capaz de absorver outras formas artísticas que se imbricam na polifonia característica da arte literária contemporânea. Da devoração à criação artística multiforme, os manifestos aqui em análise tencionam, provocam, contradizem, desestruturam o fazer literário com vistas a pôr em xeque categorizações segregadoras e/ou excludentes acerca do que é ou não literatura.

Ferréz, Vaz, Maca e o coletivo de escritores manifestam em seus textos a existência de outras vozes que reverberam um desejo coletivo de coexistir dentre as demais vozes já reconhecidas pelo mercado. Embora tenha sido o primeiro, o manifesto de Ferréz, ao contrário dos demais, utiliza poucos verbos e expressões alusivas à antropofagia como sugar, vísceras, unir, etc. Esse texto-manifesto tem seu mérito por iniciar o processo da escrita de manifestos acerca de uma arte avessa às demais e que se quer “marginal” como o próprio escritor reivindica. No entanto, para Bosi (1986) é difícil manter-se marginal no contemporâneo – tempo fugidio em que tudo e todos viram mercadoria (Benjamin, 1985). Seu texto alinha-se aos manifestos oswaldianos na medida em que contrariam o status quo e apresentam ao público uma literatura até então desconhecida ou pouco disseminada.   

Os manifestos de Sérgio Vaz, de Nelson Maca e do coletivo de artistas, em contrapartida, esboçam uma linguagem antropofágica, na qual incorporar outros campos artísticos é condição sine qua non para o surgimento da arte literária. O poeta Vaz escolhe uma linguagem próxima do seu interlocutor, diferentemente do que faz Oswald, fato que lhe permite maior clareza e objetividade no instante de comunicação. Maca traz outra discussão e define as Literaturas Divergente e Convergente, mostrando pontos de contato e ratificando a natureza plural da literatura produzida na periferia. Fato recorrente nessa produção periférica é a autoria coletiva dos textos. Ferréz começa publicando sem colocar seu nome na capa, assinando apenas “coletivo”, revelando uma “Literatura de mutirão” (Rodriguez, 2003), a exemplo do último manifesto assinado por diversos artistas ligados ao campo audiovisual. 

Como toda a obra de arte, o trabalho interpretativo não para e não se esgota com nossa leitura que se propôs também devoradora. Caminhos infinitos se desdobram a partir do contato com essas singulares expressões artístico-literárias que possuem em seu âmago um mosaico caleidoscópico de outros domínios artísticos, previamente devorados, à espera de um olhar perspicaz que decifre esse eterno enigma chamado literatura. Registrar “a resistência da poesia como uma possibilidade histórica” (Bosi, 1977 : 152) a partir da análise desses manifestos é apenas uma entre as inúmeras possibilidades interpretativas que sinalizam um marco fundamental do olhar sobre o próprio fazer literário.  

Notes de fin 

[i] . Artigo escrito com o fomento do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
Grande do Sul - IFRS Campus Canoas durante o período de pós-doutorado realizado na Université Sorbonne Nouvelle Paris 3 (2017-2018).

[1] Pensaremos a antropofagia a partir das ideias do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, escrito em 1928.

[2] Cf. Zygmunt Bauman.

[3] Márcia Ivana de LIMA e SILVA, 2014 : 66.

[4] Na França, a editora Anacaona, criada em 2009, é especializada em internacionalizar a literatura “marginal” ou “periférica” brasileira. As traduções de livros e romances de autores que ficcionalizam a periferia do Brasil são o principal alvo de Paula Anacaona, tradutora, escritora nas horas vagas e proprietária da editora francesa. Vide site: www.anacaona.fr

[5] O seu texto, L’esthétique du Froid, foi escrito, originalmente, em língua francesa para a conferência de Genebra, em 2003.

[6] Entrevista de Vitor Ramil no Seminário “Nós Outros Gaúchos” promovido pelo Instituto Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2015. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2015/10/renato-borghetti-e-vitor-ramil-marcam-encerramento-do-nosoutros-gauchos-4861231.html> Acesso em: 25 abril 2019.

[7] As redes sociais são o novo espaço de divulgação e, muitas vezes, de sobrevivência desses artistas.  

[8] Autor do romance Cidade de Deus (1997).

[9] FERRÉZ.  Manifesto de abertura: Literatura Marginal - Terrorismo Literário, 2005.

[10] Canção “Sampa”, de Caetano Veloso.

[11] “Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. [...]” (ANDRADE, 1928)

[12] A Semana de Arte Moderna da Periferia ocorreu entre os dias 5 e 10 de novembro de 2007. Foi um evento idealizado pelo poeta Sérgio Vaz , fundador da Cooperifa, espalhado por diversos pontos da zona sul da cidade de São Paulo reunindo expressões artísticas várias - música, artes plásticas, literatura, poesia, etc. – produzidas pelos artistas periféricos a fim de mostrar a efervescência cultural desses espaços. 

[13] Manifesto do olhar visceral (2007), escrito por vários autores ligados ao vídeo. A marca de autoria coletiva é característica da literatura marginal e/ou periférica, sendo assim, os nomes dos indivíduos passam a ser preterido em prol da coletividade.

[14] Ver estudos de Regina Dalcastagnè em “A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004”. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n° 26, Brasília, jul.-dez. 2005: 13-71.

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Pour citer cet article

Staudt Sheila Katiane, « Arte e
literatura  periférica : da antropofagia manifesta ao método antropofágico  », RITA [en ligne], n°14 : septembre 2021, mis en ligne le 23 septembre 2021. Disponible en ligne http://www.revue-rita.com/articles/arte-e-literatura-periferica-da-antropofagia-manifesta-ao-metodo-antropofagico.html