Construção social do desemprego, protestos de desempregados e sindicalismo no Brasil e na Argentina

 

O artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de doutorado que trata da relação entre o movimento sindical e os desempregados no Brasil e na Argentina no período de 1990 a 2002. Nesse trabalho, buscou-se compreender porque no caso argentino se constituíram organizações de desempregados e porque no caso brasileiro essa fração da classe trabalhadora se unificou em torno do movimento popular e camponês...

...Para construir o quadro analítico, utilizei como marco teórico a tese marxiana da superpopulação relativa, incorporando ainda as noções de construção social do desemprego da sociologia francesa e a análise histórica das principais tradições de luta dos dois países.

Palavras-chave: Sindicalismo; Movimento de desempregados; Sociologia do desemprego; Brasil e Argentina; Tradições de luta.

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Davisson C. C. de Souza

Doutor em Sociologia
Universidade de São Paulo (USP)
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Construção social do desemprego, protestos de desempregados e sindicalismo no Brasil e na Argentina

 

 

Introdução

Este artigo apresenta parte dos resultados de minha tese de doutorado intitulada Sindicalismo e Desempregados no Brasil e na Argentina de 1990 a 2002(Souza, 2010). Nesse trabalho, busquei comparar a relação entre o exército de operários ativo e de reserva no Brasil e na Argentina, tomando como eixo da análise as ações e representações do movimento sindical diante dos desempregados no período estudado. Para realizar esse estudo, utilizei como marco teórico a tese da superpopulação relativa marxiana e engelsiana, e a noção de construção social do desemprego advinda da sociologia francesa.

Refleti sobre o tema proposto levando em conta as duas principais centrais sindicais de cada país: a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical, no caso brasileiro, a Confederación General del Trabajo (CGT) e a Central de los Trabajadores de la Argentina (CTA), no caso argentino. Entre as questões surgidas no decorrer dessa pesquisa, destacou-se a seguinte : por que no período estudado surgiram protestos de desempregados com peso significativo na Argentina e não no Brasil ? O argumento central da tese é que as experiências prévias de luta e organização sindical, assim como a construção social do desemprego foram os principais fatores explicativos do surgimento de um movimento de massa de desempregados no primeiro caso e sua ausência no segundo.

A pesquisa foi elaborada a partir da análise de documentos de fonte primária das organizações e 48 entrevistas com dirigentes nacionais das organizações de desempregados, das centrais e dos sindicatos, federações e confederações dos setores mais afetados pela redução de postos de trabalho em Buenos Aires e São Paulo.

No período analisado, a relação do movimento sindical com os desempregados foi muito diferente nos dois países. No Brasil, as ações da CUT e da FS se basearam especialmente na lógica do oferecimento de serviços, embora essa política tenha sido sustentada a partir de diferentes discursos e propostas para a geração de empregos. As duas centrais investiram em políticas de requalificação profissional e intermediação da força de trabalho. No caso cutista, foram construídas estratégias no campo da chamada "economia solidária" e uma aliança com as organizações populares que tinham desempregados em sua base social. Na Argentina, a CGT (e no interior desta, o MTA) apresentou propostas de políticas ativas e passivas para combater o desemprego, mas somente a CTA se propôs a organizar os desempregados para a luta. Esta última, a partir do conceito de "central de trabalhadores", incorporou parte das organizações de desempregados a sua estrutura organizativa.

Como compreender a relação entre o movimento sindical e os desempregados construída nos dois países no período estudado? Ao longo da pesquisa, busquei explicar essa questão a partir dos seguintes elementos: (i) a ideologia político-sindical predominante nas centrais analisadas e o modelo de relação do sindicalismo com o Estado e a classe capitalista; (ii) a posição adotada pelas entidades diante do neoliberalismo; (iii) suas práticas diante da estrutura sindical; (iv) os interesses imediatos de sua base; (v) e os interesses organizacionais de sua cúpula.

Porém, ao longo do trabalho, evitei sugerir que "os desempregados" no Brasil e na Argentina estiveram reunidos em algum lugar esperando serem mobilizados pelas entidades sindicais. Foi necessário, pois, avaliar alguns elementos próprios desse segmento que incidiram sobre seu potencial organizativo nas duas formações para compreender porque no caso argentino surgiu um movimento de desempregados e o mesmo não se concretizou no caso brasileiro. Para refletir sobre essa questão, desenvolvi os argumentos em tópicos. Os fatores escolhidos foram os seguintes: (i) o processo de construção da cidadania, e mais especificamente, a categorização social do desemprego; (ii) as transformações na estrutura social e sua repercussão sobre as formas de manifestação da superpopulação relativa; (iii) e as experiências e tradições de luta do movimento operário e sindical. É sobre esses elementos que passo a discorrer.

 

I. A construção social do desemprego

Um primeiro aspecto a ser notado para refletir sobre a relação entre a eclosão dos protestos sociais protagonizados por desempregados e as diferentes formas de manifestação do desemprego é considerar seus fatores "normativo-institucionais" e "biográfico-subjetivos" (Demazière, 2006c; Guimarães, 2002). Esse elemento é relevante para refletir sobre as possibilidades de construção da identidade política dos trabalhadores sem emprego.

No período estudado, os desempregados brasileiros não se organizaram massivamente como desempregados. Parte se mobilizou como sem-terra ou sem-teto. Outros se organizaram para a atividade econômica ou usufruíram dos serviços oferecidos pelos sindicatos. Sem organização de luta prévia no local de trabalho ou no bairro, e em uma situação de "frustação relativa" (Gurr, 1970) menor do que no caso argentino, aqueles que puderam, tiveram acesso a um seguro-desemprego. Os que não o tiveram, buscaram estratégias individuais para sua sobrevivência. As entidades sindicais brasileiras não organizaram os desempregados para a luta. Mas, como concretizar a organização desse segmento se a vivência cotidiana do desemprego no Brasil, especialmente entre os estratos mais pauperizados, está atravessada pela necessidade de buscar alternativas para a subsistência? Vale indagar também: a formação política e a organização (em uma palavra, o trabalho de militância) poderia ter sido o ponto de partida para superar a fratura entre o movimento sindical e os desempregados? Como é possível organizar um segmento cujo maior objetivo é o seu próprio desaparecimento?

O estatuto do emprego formal no Brasil é, em comparação com a Argentina, relativamente débil. As taxas de desemprego e subemprego, historicamente altas, a ausência de políticas de Estado para esses segmentos e as formas de sobrevivência baseadas no assalariamento encoberto formaram, culturalmente, um modo muito particular de vivência cotidiana do problema: fazer bicos ou ir para a rua trabalhar como ambulante. Por isso, o significativo sedimento condenado ao pauperismo e o baixo processo de constituição da cidadania(1) no país resultaram na formação de uma tradição de organização popular de "movimento de pobres" (Fox Piven, Cloward, 1979). Isso se deve ao fato de que a expansão capitalista no país não foi acompanhada pela extensão de direitos sociais ao conjunto da população, tal como se deu na Argentina. Ao contrário, este processo acentuou a concentração do contingente de pobres nas periferias das grandes cidades. Esses elementos explicam, parcialmente, porque no período estudado a superpopulação relativa do país se mobilizou através de organizações sociais de sem-teto e, principalmente, de sem-terra, o que afirma sua tradição de luta no campo, mas também do movimento operário e popular organizado por melhores condições de vida nos bairros. Na Argentina, o processo de categorização social do emprego formal foi mais forte do que no Brasil, o que contribuiu para a constituição de uma identidade política de desempregados. Também cumpriram um papel importante para a a construção social do estatuto de desempregado no país, no período estudado específico, as políticas assistencialistas dos governos para esse segmento, que funcionaram como um dos principais motores da mobilização, especialmente após a criação de mecanismos que permitiram a administração dos planos sociais por parte das organizações.

 

II. As formas de manifestação da superpopulação relativa

No Brasil, o crescimento do desemprego se deu a partir de uma situação prévia de alto índice de subemprego e informalidade. O surgimento e expansão de organizações de sem-terra e sem-teto estão relacionados ao crescimento da superpopulação relativa consolidada no país e encontra seu lastro na pobreza crônica e no desemprego endêmico historicamente constitutivo da estrutura social brasileira. No caso argentino, o desemprego massivo e o subemprego tiveram um crescimento explosivo em curto prazo. Nesse sentido, pode-se afirmar que o movimento de desempregados foi fruto do "choque" da expansão da superpopulação relativa do país. Ademais, as experiências prévias de luta sindical no núcleo originário e a política de auxílio do Estado criaram um contexto favorável para a mobilização desse segmento.

Para compreender as mudanças na composição da classe trabalhadora das duas formações sociais, é necessário levar em conta o contexto específico em que se constituiu, em cada uma, a hegemonia do capital financeiro. No período estudado, as políticas neoliberais dos governos de Fernando Collor de Melo (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-1998; 1999-2002), no caso brasileiro, e de Carlos Menem (1989-1999) e Fernando De la Rúa (1999-2001), no caso argentino, tiveram algumas tendências comuns: regulamentação mais flexível das leis trabalhistas, redução dos gastos sociais, privatizações, sobrevalorização cambial, altas taxas de juros e abertura comercial e financeira. Essas políticas estiveram sustentadas, materialmente, pela mundialização do capital em larga escala e pelo processo de introdução de novas tecnologias no processo produtivo e renovação dos métodos de gestão, especialmente nas grandes empresas de capital concentrado instaladas nos dois países. Essas medidas tiveram o desemprego como um de seus pilares de sustentação (Duménil e Lévy, 2003). Em decorrência dessas transformações, os dois países passaram nas últimas décadas por um crescente processo de proletarização, pauperização e aumento do peso relativo da população sobrante para as necessidades imediatas do capital.

É necessário levar em conta que o neoliberalismo brasileiro foi menos radical que o argentino em vários aspectos. O maior exemplo desse elemento esteve na política de sobrevalorização cambial, mais "flexível" no Brasil após a crise de 1998 se comparada à "rigidez" da "convertibilidade" na Argentina e sua insistência em manter a paridade do peso com o dólar até o colapso de 2001. Ademais, o processo de privatizações nesse país foi muito mais intenso, tendo atingido alguns setores estratégicos que não chegaram a ser vendidos no Brasil, como a exploração petrolífera. A YPF, principal empresa estatal do país, foi privatizada. A Petrobrás passou a ser uma corporação mista após a quebra do monopólio estatal, mas seguiu sendo majoritariamente estatal. No caso brasileiro, ademais, a implantação do câmbio flutuante a partir de 1999 permitiu uma maior sobrevida à indústria nacional, menos suscetível ao crescimento das importações.(2)

Cumpre um papel significativo na análise mencionar a relação entre as frações de classe hegemônicas da burguesia presente nos dois países nas últimas décadas. Na Argentina, o capital financeiro internacional passou a ter um papel importante pelo menos desde a ditadura militar iniciada em 1976, quando a produção industrial já se encontrava relativamente estancada. No Brasil, seguiu sendo importante a presença das oligarquias regionais ligadas à atividade agrícola, mas o peso do setor industrial paulista era hegemônico pelo menos desde a década de 1950. Fazendo um exercício de análise a longo prazo, pode-se dizer que na Argentina se formou uma burguesia associada com baixa capacidade de expansão em larga escala (especialmente para além de sua fronteira, dado que seus limites internos se encontram relativamente esgotados). No Brasil, a grande burguesia logrou manter o domínio de algumas atividades econômicas de capital concentrado, o que lhe vem dando maiores condições para a expansão extensiva e intensiva no cone-sul americano.

As características da economia capitalista nos dois países têm uma íntima relação com a política levada a cabo por suas respectivas ditaduras militares. A repressão ao movimento operário e sindical iniciada em 1964 cumpriu o objetivo de amortecer os constrangimentos ao desenvolvimento do capitalismo no país; na Argentina, a política de Estado de genocídio de militantes políticos e sindicais a partir de 1976 teve a finalidade de dificultar a resistência à implantação da plataforma neoliberal que começava a ser ditada pelo imperialismo estadunidense.

Os dados apresentados por Tarditi (2000, p. 49) sobre a produção automobilística nos dois países mostram que a partir de 1964 o Brasil conheceu um grande crescimento no setor. Observa-se também que a curva ascendente se estendeu até 1980, entre os chamados "anos de chumbo" e o "milagre" brasileiro. A partir dos anos 1980, a produção de automóveis teve um período de estagnação, com pequenos intervalos em que oscilou, voltando a se recuperar em 1992, a partir da implantação das Câmaras Setoriais Automotivas. Na Argentina, a indústria automobilística praticamente se estancou de 1973 a 1992. Na década de 1990, a fabricação de carros voltou a crescer, quando o país ganhou o mercado de outros países sul-americanos, como a Colômbia e a Venezuela. Cumpriram papel importante também nesse período os acordos que o país firmou a partir da fundação do Mercosul, em 1995. O caráter subimperialista do capitalismo brasileiro tem se tornado cada vez mais evidente a partir do governo de Lula. A liderança regional do país e a ação de seus empresários em solo argentino, tanto em relação à balança comercial como na aquisição de empresas deste país, comprovam esta tendência.(3)

É importante destacar ainda que, no período estudado, durante a implantação do projeto neoliberal na Argentina, houve pelo menos três momentos de "crise econômica": 1989-1990; 1995-1995; 1998-2003, sendo que foi ao longo desta última, mais duradoura e com efeitos mais profundos sobre a classe trabalhadora, que se verificou a constituição de um movimento de desempregados massivo e nacional. No caso brasileiro não se viveu uma crise tão prolongada e intensa. Ademais, ao analisar a estrutura social dos dois países, é notável uma diferença fundamental em relação à taxa de superpopulação relativa, consolidada historicamente de forma crônica no Brasil e expressa de forma epidêmica na Argentina no início do período estudado. Essas características podem ser sintetizadas a partir dos seguintes elementos: (i) maior peso da população rural pobre sem emprego registrado e com ocupações irregulares (superpopulação relativa latente), no caso brasileiro; (ii) maiores taxas de rotatividade, desemprego oculto pelo trabalho "precário" e "informal" (superpopulação relativa flutuante e estagnada), no Brasil; (iii) maior nível de assalariamento formal do proletariado urbano (ativo empregado formalmente), com alto nível de cobertura de direitos e benefícios, no caso argentino; (iv) maior incidência histórica da pobreza crônica (camada pauperizada), no caso brasileiro. Ademais, enquanto a Argentina passou por um amplo processo de construção da cidadania, especialmente a partir do governo de Perón, o Brasil se caracterizou por uma "cidadania regulada" (Santos, 1979), dual e restrita. A situação mais desfavorável no Brasil se acentua pelas desigualdades internas no país, que fazem com que a força de trabalho das regiões menos industrializadas sirva constantemente como população sobrante para as necessidades de expansão do capital dos grandes centros urbanos com maior nível de desenvolvimento capitalista, especialmente no eixo Rio-São Paulo.

 

III. Experiências e tradições de luta

          Sobre a inexistência de um movimento de desempregados tal como na Argentina, um sindicalista cutista explicitou que se trata de uma “questão histórica” de “diferença de construção e de organização”, apesar de ressaltar que a política da CTA e da CUT é “muito similar”. Esse entrevistado também se referiu à “forma como os trabalhadores brasileiros e os trabalhadores argentinos fizeram o enfrentamento da ditadura” e as “políticas sociais que cada país teve ao longo destes últimos 30 anos” (E6), reportando-se aos programas assistenciais para os desempregados na Argentina. Ao comparar as experiências de luta brasileiras com as argentinas, um entrevistado da direção da central ressaltou a importância do apoio da Igreja na constituição da mobilização no Brasil e destacou o papel do movimento popular para a organização dos desempregados, ainda que o tenha feito sob outras bandeiras:

(...) a Argentina não tem uma Igreja [Católica] atuante, como é aqui no Brasil, que estimula, organiza a resistência dos desempregados, as Pastorais Sociais da Igreja, o MST também que organiza uma parcela dos desempregados (...). São formas de organização diferentes e de representação diferentes que canalizam a luta dos desempregados. Por isso que aqui no Brasil os movimentos sociais são muito mais fortes do que os movimentos sociais da Argentina. Lá, como os movimentos sociais são extremamente frágeis e a Igreja Católica argentina nunca foi uma Igreja progressista como a brasileira, eu acredito que uma parcela significativa desses desempregados, etc., foram canalizados para se organizarem dentro de uma central sindical. No caso do Brasil, não. No Brasil, há uma militância muito grande dos desempregados, autônomos, etc., [mas estes] foram canalizados para outros movimentos sociais (...) (E4).

Em seguida, este dirigente justificou a política cutista de priorizar a articulação com as organizações populares:
"(...) o que nós temos que fazer, e é isso que a CUT faz, é estimular (...) que o sindicato tenha comitês de desempregados, que nós façamos articulações políticas com os movimentos sociais, e isso nós fazemos. A CUT é a principal organizadora do Fórum Social Mundial, que organiza (...) um conjunto de movimentos sociais, e muitos desses movimentos sociais tem militância muito forte (...) [com os] desempregados, seja através das Pastorais Sociais da Igreja, seja através de outros movimentos sociais (...) (E4)."
Nos anos 90, no Brasil, parte dos trabalhadores repelidos da indústria, ou em busca do primeiro emprego, realizou cursos de requalificação profissional oferecidos pelos sindicatos. Essa estratégia assistencialista foi prioritária em relação à falta de uma política de mobilização desse segmento. Porém, é interessante notar também que a economia solidária, como organização dos trabalhadores para a produção e o consumo através do assalariamento encoberto, ressignificou a tradição da superpopulação relativa brasileira de se organizar individualmente para a atividade econômica, imprimindo-lhe um caráter coletivo por meio do cooperativismo. Esses elementos estiveram ausentes no caso argentino, onde a construção social do emprego formal, pelos baixos índices históricos de desemprego e subemprego, era muito mais sólida.


É importante analisar também as relações de classe nos dois países, considerando a correlação de forças que possibilitou aos trabalhadores desempregados argentinos a construção de organizações com tamanho peso político no conjunto dos protestos sociais. Nesse sentido, as tradições e experiências prévias de luta do movimento operário e sindical foram os elementos fundamentais.

Quando iniciei esta pesquisa, esperava encontrar muito mais semelhanças entre o sindicalismo brasileiro e argentino. No entanto, no decorrer da investigação, observei que apesar da presença comum dos aspectos centrais da estrutura sindical corporativa oficial nos dois países (investidura, unicidade e imposto sindical) e alguns de seus efeitos mais recorrentes (burocratização, cupulismo, assistencialismo, entre outros), há também diferenças institucionais, legislativas e organizativas marcantes. Esses elementos explicam, parcialmente, as diferentes experiências de luta que se conformaram nas duas formações sociais, construídas em torno de distintos modelos de relação das entidades sindicais com os trabalhadores, com os empresários e com o Estado, que forjaram tradições de luta muito particulares.

Ao formular esses argumentos, não busquei explicar a inexistência de um movimento de desempregados no Brasil pela falta de "elementos argentinos" em sua história. Tal procedimento analítico seria um erro teórico e metodológico. Ora, se a comparação fosse feita com outro país, provavelmente as ausências seriam outras. Os fatores desencadeantes da eclosão de um movimento e os elementos explicativos de sua inexistência no Brasil provavelmente são mais amplos que os explicitados neste trabalho. É menos complexo explicar a presença do que a ausência, pois esta última é mais suscetível a especulações. Por isso, o exercício que farei a seguir se restringe aos parâmetros comparativos decorrentes da análise de caso da Argentina, mas não se trata de invalidar os argumentos construídos ao longo desta tese.

É possível afirmar que a tradição de luta e organização do movimento operário argentino desenvolveu, como principal ideologia inerente (Rudé, 1982), um "sentimento" (Willians, 1997) reivindicativo, cuja maior manifestação está em sua "tradição de mobilização de rua", que se reproduz historicamente no país por meio de suas "experiências" (Thompson, 1997), da "tradição oral" e da "memória folclórica" da classe trabalhadora. A expressão sindical desse elemento é a recorrência de greves gerais como ferramenta de protesto utilizada há mais de um século, mas se concretiza também em outras formas e instrumentos de luta adotados desde o começo do século XX. O sindicalismo argentino desempenha um papel fundamental na reprodução desses fatores. Destaco dois deles. Primeiramente, a doutrina justicialista, que constitui a ideologia derivada hegemônica no terreno sindical no país. Muitos estudos apontam o sindicalismo como elemento constitutivo das "origens do peronismo", assim como o "vínculo perdurável" da relação entre ambos (Doyon, 2006; Murmis e Portantiero, 2004, Del Campo, 2005). Este é um aspecto explicativo crucial, pois a reprodução dessa ideologia funciona como um dos principais impulsionadores da organização e mobilização sindical do país. Em segundo lugar, cumpre um papel fundamental o modelo sindical argentino, que se mantém praticamente intacto em seus elementos essenciais desde o surgimento da CGT, em 1930. Vale ressaltar duas de suas particularidades, que se evidenciam ainda mais na comparação com o Brasil. O sindicalismo argentino possui mecanismos de representação no local de trabalho, por meio de comissões internas e corpo de delegados com estabilidade de seus membros garantida por lei. Ademais, está presente no país a garantia de existência de sindicatos e centrais nacionais com poder de negociação coletiva centralizada, e capacidade de mobilização e convocação de greves gerais com alta adesão e repercussão política, o que contribui para o surgimento de experiências de luta mais unificadas no país. A conexão entre esses fatores tradicionais e os eventos presentes é uma questão histórico-sociológica complexa e, tal como argumenta Hobsbawn (2000), afeta mais o estilo de um movimento do que sua natureza, devendo ficar restrita, em última instância, ao terreno da especulação. No caso argentino, foi justamente isso que ficou demonstrado, pois os fatores mais destacados foram os instrumentos de luta e o método de organização dos desempregados, que possuem uma forte conexão histórica com as experiências de luta do movimento operário e sindical do país.

Ao contrário, as experiências e tradições de luta do sindicalismo brasileiro não constituíram no interior dos setores urbanos de seu exército de reserva a acumulação prévia necessária para uma mobilização nacional e massiva que tivesse como eixo a construção identitária em torno da condição de trabalhador desempregado. No caso do Brasil, foi outra parcela da população sobrante que se organizou politicamente, construindo um peso político central no conjunto das lutas sociais do país: os camponeses sem-terra representados principalmente pelo MST.

 

Conclusão

Uma primeira aproximação ao tema permite afirmar que, no Brasil, a vivência dos desempregados se aproximou, em parte, da lógica de ir para a rua fazer um "bico"(4); na Argentina, sustentou-se mais pela noção de "protesto de rua". Embora em ambos estivessem presentes o assistencialismo, a caridade e outras formas de auxílio que, no Brasil este tem sido papel da Igreja, de ONGs e, de certa forma, a partir da década de 90, dos sindicatos, no caso argentino foi, ademais, papel do Partido Justicialista.

Com base nos fatores apresentados, foi possível formular uma explicação para a mobilização dos desempregados na Argentina e sua inexistência no Brasil. As tradições e as experiências de luta do movimento operário e sindical, a organização popular dos pobres, a participação da superpopulação relativa na estrutura social, a categorização social do emprego, o grau de constituição da cidadania e a ideologia inerente no processo de formação do protesto popular foram elementos cruciais.

No caso argentino, o exército de operários ativo possui a experiência e a tradição sindical de mais de um século de organização e militância no local de trabalho, além de mecanismos de representação, poder de negociação e mobilização no nível nacional, que se expressam por meio dos sindicatos nacionais e da existência estável de uma central sindical única. Vale destacar, a respeito dessa questão, o papel das convenções coletivas centralizadas e da greve geral como instrumento de luta recorrente ao longo da história do país. No período estudado, foram convocados nove eventos desse tipo durante a presidência de Menem, dez durante a gestão de De la Rúa e quatro no primeiro ano de Duhalde, algumas com alto grau de adesão e formação de unidade no conjunto do movimento sindical. A reserva na Argentina era relativamente pequena, mas cresceu expressivamente ao longo do período estudado. A combinação desses elementos (forte tradição de lutas sindicais, amplo processo de construção da cidadania e "frustração relativa" diante situação anterior de baixo índice de superpopulação relativa) foi o ponto de partida para a organização de sua reserva como desempregados.

No Brasil, a situação foi diferente. O ativo possui, historicamente, menor tradição de organização sindical, a qual foi marcada pelo desenvolvimento "tardio" do capitalismo no país, pela descontinuidade de sua ascensão como fenômeno de massa, pela repressão de governos autoritários, pela tutela estatal e pela dificuldade de organização nacional. Ademais, a representação no local de trabalho é uma prática pouco difundida no país, em parte por conta da arbitrariedade patronal e da inexistência de estabilidade garantida por lei, mas também pela acomodação das entidades à estrutura sindical. No início do período estudado, as centrais sindicais estavam se consolidando novamente como sujeito dos protestos sociais após vinte anos de ditadura militar, mas jamais havia tido uma presença institucional estável. Porém, passados quase trinta anos do processo de formação da CUT, os sindicatos seguem pulverizados e as negociações e mobilizações, relativamente fragmentadas. O instrumento de luta da greve geral, menos freqüente no país, ganhou expressão nacional em poucos momentos. Foram convocadas apenas três paralisações nacionais no período estudado, sendo que apenas uma foi realizada pelo conjunto das centrais. A reserva, que já era expressiva no país no início dos anos 90, cresceu substancialmente em sua parcela estagnada e em sua camada pauperizada. A combinação desses elementos (frágil tradição de organização e luta sindical, processo de construção de uma cidadania dual e restrita, superpopulação relativa consolidada em sua forma crônica) explica parcialmente a ausência de organização da reserva como desempregados e a eclosão de organizações populares como os sem-terra e os sem-teto. Essa forma de luta pode ser explicada pela tradição de séculos do movimento camponês e de pobres no país, que se remete, por sua vez, à estrutura social e às experiências históricas de mobilização desses setores.

A "tradição de manifestação de rua" na Argentina, como principal ideologia inerente do processo de formação do protesto popular, explica parcialmente a eclosão do movimento de desempregados no país. Nesse caso, foi fundamental o diálogo histórico de ditas organizações com o movimento operário e sindical. No Brasil, não houve apareceu um movimento de desempregados como tal. O papel de organização desse segmento foi cumprido por sua "tradição de luta pela terra", que também funcionando como ideologia inerente, explica porque o Movimento dos Sem Terra (MST) foi o maior aglutinador da reserva urbana e rural do país, organizando tanto os camponeses como os desempregados das grandes metrópoles. Por tal motivo, há décadas a reforma agrária é uma das principais bandeiras defendidas pelo movimento operário, sindical e popular na luta contra o desemprego. Na correlação de forças estudada, as respostas sindicais para os desempregados nas duas formações ressignificaram esses elementos tradicionais que, em boa medida, explicam o tipo de organização dos diferentes segmentos do exército de reserva da classe trabalhadora nos dois países.

 

Notas de rodapé


(1) Emprego o conceito de cidadania aqui para designar o conjunto de direitos civis, sociais e políticos garantidos pelo Estado burguês. Não busco, com sua aplicação, dar conta da polissemia que envolve sua categorização, já que não se trata de uma noção universal, mas construído historicamente e passível de particularidades segundo o nível de desenvolvimento do capitalismo e a posição nas relações de forças internacionais de uma dada formação social.

(2) Alguns aspectos dessa comparação estão fundamentados por Devoto e Fausto (2004).

(3) A partir de Gramsci, em Americanismo e Fordismo (Gramsci, 1976), parece plausível considerar que a posição subimperialista brasileira se deve às condições de aprofundamento do processo de americanização presentes no país, com maiores possibilidades de desenvolvimento interno e externo. Com a diferença, em relação aos EUA, de que o fator decisivo para o desenvolvimento em larga escala do capitalismo brasileiro não foi a estrutura demográfica "racionalizada", mas um estoque de força de trabalho disponível quase-inesgotável que barateia o valor pago pelo emprego da força de trabalho. A burguesia brasileira se associou ao capital imperialista estadunidense desde a Segunda Grande Guerra, processo que se efetivou durante o Governo de JK (Ianni, 1994). Na Argentina, além de uma superpopulação relativa consolidada historicamente menor, há uma referência histórica mais marcante de uma política nacionalista, fruto do processo de constituição da cidadania no país, cujo ápice se encontra no peronismo, além de uma forte tradição de luta sindical e negociação coletiva, fatores que pressionam a classe capitalista e constrangem a expansão do capital no país. A maior fragilidade desses elementos no Brasil possibilita melhores condições para a superexploração do trabalho e a apropriação de maiores taxas de extração de mais-valia por parte da classe capitalista.

(4) Em Americanismo e Fordismo, Gramsci (1976) destaca alguns elementos tradicionais, presentes no sul da Itália, muito semelhantes a estes aspectos brasileiros aos quais chamo a atenção. O autor cita o caso de Nápoles, onde existia uma "vadiagem orgânica", dada a maneira como a cidade organiza sua "vida prática", com "suas indústrias artesanais, seu comércio ambulante, e com a incrível pulverização da venda de mercadorias e serviços entre os desempregados que circulam pelas ruas". Em outra passagem, o autor faz referência à composição da população italiana, e destaca a existência de uma "desocupação endêmica" em algumas regiões agrícolas do país.

 

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Para citar este artículo:

Souza C. de Davisson C., "Construção social do desemprego, protestos de desempregados e sindicalismo no Brasil e na Argentina", RITA, N°4 : diciembre 2010, (en línea), Puesto en línea el 10 de diciembre de 2010. Disponible en línea http://www.revue-rita.com/notes-de-recherche-60/construcao-social-do-desemprego.html