A revista Novo Correio de Modas (1852-1854) : moda e literatura francesa com toque tropical

Este artigo pretende discutir parte da circulação da cultura francesa no Rio de Janeiro em meados da década de 1850. Para tanto, analisa os conteúdos provenientes da França que foram difundidos nas páginas de uma revista feminina, chamada Novo Correio de Modas: novelas, poesias, recordações históricas, anedotas e charadas (1852-1854)...

 ...É possível constatar que, se as leitoras brasileiras seguiam de perto os eventos que se desenrolavam na França, sobretudo em Paris, esses eram de certa maneira adaptados pelos tradutores e redatores da publicação a fim de se tornarem acessíveis, compreensíveis ou compatíveis à realidade do país. Assim, a cultura francesa, longe de circular de maneira aleatória no Brasil, dependia da mediação desses profissionais.

Palavras-chaves: Globalização da cultura; Moda; Prosa de ficção; Imprensa; Novo Correio de Modas.

 

Resumé

Cet article porte sur  la circulation de la culture française à Rio de Janeiro dans les années 1850.  Dans ce contexte, nous analyserons les contenus provenant de France et diffusés dans les pages d’une revue féminine, nommée Novo Correio de Modas : novelas, poesias, recordações históricas, anedotas e charadas (1852-1854). Cela permet de constater que si les lectrices brésiliennes suivaient de près l’actualité française, surtout celle de Paris, celle-ci était en quelque sorte adaptée par les traducteurs et rédacteurs de la publication afin de la rendre accessible, compréhensible ou compatible avec la réalité du pays. Ainsi, la culture française, loin de circuler de façon aléatoire au Brésil, était soumise à la médiation de ces professionnels.

Mots-clés: Mondialisation de la culture; Mode; Fiction en prose; Presse; Novo Correio de Modas.

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Ana Laura Donegá

Doutorante em Teoria e História Literária

Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) – UNICAMP

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A revista Novo Correio de Modas (1852-1854) : moda e literatura

francesa com toque tropical[1]

 

Introdução        

          A globalização não é um fenômeno recente. Ao contrário, trocas envolvendo pessoas, ideias, bens e artefatos culturais ocorrem há muito mais tempo do que se costuma imaginar. Segundo Hopper (2007 : 13-21), existem indícios de conexões de ordem econômica, política e cultural envolvendo sociedades distintas desde pelo menos a época das antigas civilizações. Contudo, como salienta o autor, essas trocas somente alcançaram escala global no início do século XVI, quando os conquistadores europeus conseguiram pela primeira vez unir as quatro partes do mundo, ao atingirem a América e a Oceania.

Gruzinski (2001) também defende que o processo da globalização remonta ao período das grandes navegações, mais especificamente a 1580, ano em que ocorreu a incorporação de Portugal e seus domínios ao reino da Espanha. De acordo com o autor, a união dessas duas dinastias permitiu o surgimento de uma nova monarquia mundial que englobava territórios distantes geograficamente, todos governados por um único monarca, organizados em torno do mesmo sistema burocrático e controlados pela mesma instituição religiosa. A seu ver, foi nesse contexto que se deu a “aparição de um público internacional de leitores com dimensões planetárias”, já que os impressos da península ibérica e de outras regiões da Europa passaram a gozar de difusão mundial, ao serem transportados nos navios que cruzavam os oceanos (Gruzinski, 2001 : 181).

Se, por um lado, jornais, revistas e livros circulavam por todo o globo desde os quinhentos, por outro, a precariedade nos sistemas de comunicação e transporte impedia que as trocas entre os países ocorressem em um fluxo rápido e intenso. Mas, em meados do século XIX, apareceram algumas inovações tecnológicas que alteraram essa situação, como as primeiras ferrovias, os navios movidos a vapor e o telégrafo elétrico. Juntas, essas descobertas aumentaram o volume das transações comerciais e, ao mesmo tempo, diminuíram o tempo gasto no transporte de produtos, pessoas e ideias de um lado para o outro do mundo (Sodré, 1999 : 186). Elas também alteraram as relações culturais entre as diferentes partes do planeta, impulsionando a circulação de impressos a nível transnacional, uma vez que, ao perceberem que poderiam aumentar os lucros nos negócios fazendo uso dessas novas tecnologias, alguns editores e livreiros europeus decidiram investir no mercado de livros internacional e intensificaram tanto o envio quanto o recebimento de produtos da Europa para nichos localizados fora do continente (Abreu, 2011 : 3-4).

Um importante destino para os impressos europeus na época foi o Brasil. Pesquisas recentes mostram que os leitores brasileiros, sobretudo os moradores da corte, encontravam nas prateleiras das livrarias, das bibliotecas públicas e dos gabinetes de leitura um acervo bastante variado de publicações estrangeiras que, na maior parte das vezes, tinham origem francesa[2]. Ao menos dois motivos explicam a supremacia da França no mercado livreiro brasileiro oitocentista: o primeiro deles é a necessidade da jovem nação sul-americana de se afirmar enquanto país livre. Menos de três décadas após a Independência política, a filiação ao modelo sociopolítico-cultural francês servia bem ao propósito da elite brasileira que pretendia superar o passado, expurgando a herança ainda recente da dominação portuguesa, e promover o futuro por meio da identificação com uma nova civilização (Pinto, 1999). O segundo motivo é o prestígio dos livros franceses nos mercados de todo Ocidente, fenômeno que decorria da hegemonia de Paris no universo literário nesse período (Casanova, 2002).

Além do mercado livreiro, a França dominava também o mundo das tendências de vestuário, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro, onde se concentrava uma classe com maior poder aquisitivo e consequentemente com condições financeiras de arcar com os custos do seu afrancesamento. O desejo da sociedade carioca de reproduzir do outro lado do Atlântico os figurinos em voga na Cidade Luz se tornou mais tangível nas primeiras décadas do oitocentos, quando alguns profissionais franceses dedicados à confecção e à venda de peças de roupas, acessórios e sapatos deixaram a Europa a fim de se instalarem na corte brasileira. Responsáveis por incrementar o comércio da cidade, esses imigrantes inseriram no mercado local produtos variados, como coletes, camisas, chapéus, flores, bordados, rendas, meias e lingeries. Os mais notórios foram aqueles que se dedicaram ao público feminino, atuando como proprietários de lojas, ou ainda exercendo igualmente a prática da costura (Menezes, 2004 : 13).

O interesse pela indumentária importada da França e o gosto pela leitura de obras de autores desse país explica a publicação da revista Novo Correio de Modas: novelas, poesias, recordações históricas, anedotas e charadas, um hebdomadário dirigido ao sexo feminino, veiculado na capital do Império entre 1852 e 1854, que apresentou matérias com assuntos variados – incluindo moda, literatura, história, beleza e economia doméstica. Muito embora a proeminência da cultura francesa esteja clara em todas as seções do periódico, ela fica especialmente evidente naquelas consagradas às tendências de vestuário e à prosa de ficção, que foram, aliás, o carro-chefe da publicação, ocupando ao menos 2/3 de suas páginas.

Este artigo analisa ambas seções da revista com o objetivo de investigar parte da presença da cultura francesa no Rio de Janeiro em meados do século XIX. Ele se encontra organizado em três partes: a primeira apresenta brevemente a seção sobre roupas e acessórios do Novo Correio de Modas e a segunda, as narrativas ficcionais vindas da França que foram difundidas em seu interior. Em ambas há a preocupação em se listar as fontes mais utilizadas, os ilustradores e autores mais recorrentes e também os assuntos mais tratados. Por fim, a terceira trata das interferências dos tradutores na forma como se deu o contato das cariocas com os textos franceses e destaca o papel desses profissionais na mediação entre a cultura europeia e o público leitor do periódico. 

 

I. A moda francesa chega aos trópicos...

          Cada número do Novo Correio de Modasapareceu acompanhado de uma gravura de figurino, de um molde de roupas ou, ainda, de um debuxo de bordados, geralmente importados da França. As primeiras eram coloridas e representavam mulheres, homens e crianças, que apareciam sentados ou em pé, em ambientes fechados (como salas e quartos), ou abertos (como jardins, campos e lagos). Os modelos voltados ao sexo femino trouxeram a assinatura de Annaïs Toudouze, ilustradora francesa pouco conhecida, cuja família, no entanto, desfrutava de muito prestígio no meio artístico parisiense. Já os modelos masculinos, em número significativamente menor, foram retirados do Journal de Tailleurs, um periódico impresso em Paris especializado em questões de vestuário.

Imagem 1: Modelo de figurino veiculado pelo Novo Correio de Modas no número 9 do 1º, semestre de 1852.

Na seção Modas, especialmente dedicada a essa temática e de presença fixa na publicação, um autor anônimo descrevia a gravura que acompanhava o exemplar a fim de permitir que as leitoras reproduzissem os figurinos. Muitas vezes ele se mostrou apreensivo com a abordagem do assunto e afirmou que sua tarefa deveria ser desempenhada por uma mulher. Mesmo alegando pouco conhecimento sobre o tema, soube valorizar os figurinos apresentados pela revista, ao destacar repetidas vezes que eles eram originários da Cidade Luz:

“Nossa primeira estampa representa dois figurinos de senhoras, qual deles o mais bonito. De Paris os recebemos, e aqui os entregamos às nossas amáveis leitoras, para que aproveitem o que julguem mais distingué, a fim de formar o belo composto de seus toilettes” (NCM, 1º. sem. de 1852, n. 1, p. 1).

A tarefa do responsável pela seção não se limitava à simples descrição dos figurinos que acompanhavam cada exemplar. Como a diferença climática impedia os brasileiros de copiarem à risca a moda europeia, ele foi obrigado a interferir, sugerindo algumas adaptações que permitiriam que o modelo publicado pelo periódico fosse efetivamente utilizado pelas leitoras. Em uma edição de julho de 1853, por exemplo, declarou que diante da impossibilidade de se “seguir ao pé da letra os caprichosos decretos da capital do mundo elegante” na corte brasileira, o ideal seria que fossem privilegiados tecidos leves e outros acessórios mais adequados a terras tropicais: 

“Os chapéus de veludo, que abundam em Paris, são quase uma anomalia entre nós, aonde (sic) o frio desaparece às horas em que nossas belas se levantam de seus leitos: os vestidos de pesados estofos também os não precisamos. Fazendas ligeiras, transparentes, são as que mais se casam com o nosso clima, e vão melhor nos corpos flexíveis de nossas compatriotas. Os vestidos tafetás não deixam também de merecer aceitação neste momento, sobretudo sendo de largos xadrezes e guarnecidos de três ou quatro ordens de babados”. (NCM, 2o. sem. de 1853, n. 1, p. 8).

O trecho acima mostra que para ser assimilada pela sociedade brasileira, era necessário que a moda francesa se adaptasse ao Brasil. Ou, como disse o colaborador do Novo Correio de Modas, que “se casasse” com o clima quente da capital do Império, deixando para trás tecidos grossos – que na Europa ajudavam a garantir a proteção do frio, mas que no país tropical seriam praticamente uma “anomalia” –, e utilizasse, em contrapartida, materiais leves e fluidos, mais compatíveis com altas temperaturas dos trópicos. O item a seguir evidencia que, assim como as tendências de vestuário, a literatura em prosa vinda da França ganhou as páginas da revista somente depois de passar por uma transformação que pretendia torná-la compatível com a realidade brasileira, ou seja, com o gosto dos leitores do país e ainda com os interesse que orientavam a imprensa nacional nesse período. 

 

II. ...E a literatura também!

          Como de praxe na imprensa periódica da época, os artigos do Novo Correio de Modas foram publicados majoritariamente sem assinatura. Contudo, a partir da busca dos nomes próprios encontrados no interior desses textos em sites como OpenLibrary e GoogleBooks e da posterior leitura dos originais em bibliotecas da França e do Rio de Janeiro, foi possível descobrir a origem de aproximadamente 80% das narrativas difundidas pelo periódico. Essa pesquisa revelou que do total de 182 narrativas com ao menos uma página de extensão que apareceram no interior da revista, ao menos 67 – ou 36,81% – tiveram origem francesa.

ORIGEM

TOTAL

Francesa

                 67      

Inglesa

26

Brasileira

20

Portuguesa

12

Alemã

8

Espanhola

4

Árabe

2

Italiana

2

Russa

2

Polonesa

1

Desconhecida

38

TOTAL

182

Tabela 1: origem das narrativas publicadas pelo Novo Correio de Modas[3].

O Novo Correio de Modas publicou textos dos mais famosos folhetinistas franceses desse período. Nas colunas da revista apareceram títulos como “O barbeiro de Paris” (“La maison du barbier”) e “A cruz e o vento” (“Le croix et le vent”), de Paul de Kock; “A heroína de uma noite” (“L’heroïne d’une nuit”), de Ponson du Terrail; “A grade do jardim” (“La grille du parc”), de Frédéric Soulié; “Rodolpho e Berta” (sem título em francês) e “A mão esquerda” (“Dieu et le diable”), de Alphonse Karr, e “Francisco I e o arquiteto primatício” (título original desconhecido) e “Os dois arquitetos de Francisco I” (título original desconhecido), de Alexandre Dumas. Todos esses autores tiveram presença constante na imprensa brasileira, inclusive em jornais de grande circulação que, tal qual o Novo Correio de Modas, costumavam se apropriar de textos extraídos de publicações estrangeiras a fim de entreter seus leitores (Heineberg, 2004). A particularidade da revista de modas foi de privilegiar narrativas curtas, de um ou no máximo três números de extensão, enquanto os demais preferiam aquelas mais longas, adaptadas ao formato folhetim.

Na lista dos escritores franceses cujos textos foram traduzidos pelo periódico, encontram-se também nomes como Alphonse Brot, Charles Monselet e George Sand, autores, respectivamente, de “O leque e a ventarola” (“L’eventail”), “Joana, ou um amor contrariado” (“Comment on se fait aimer de sa femme”) e “Rosina e Júlia” (título original desconhecido). Junto a eles esteve o Visconde d’Arlincourt, que escreveu pelo menos três narrativas: “O anel de ferro” (“Le talisman”), “Anedota de 1836” (“La nuit du sang: anedocte de 1836”) e “História espanhola contemporânea” (“La porte bleue. Histoire espagnole contemporaine”). Ao contrário da maioria dos textos ficcionais difundidos pela revista, os redigidos por d’Arlincourt poderiam receber a alcunha de folhetim, como se concebe o gênero atualmente, porque se estendem por mais de um número e apresentam ganchos de modo a manter a atenção das leitoras, instigando-as a querer seguir o desenrolar da trama[4].

Nas páginas da publicação apareceram ainda nomes pouco conhecidos nos dias de hoje, incluindo S. N. Cartier-Vinchon, Etienne Enault, Michel Masson (pseudônimo de Auguste Michel Benoît Gaudichot-Masson) e Louis François Hilarion Audibert (que assinava seus textos como M. Audibert). Na verdade, escritores estrangeiros mais ou menos célebres conviviam lado-a-lado na imprensa brasileira nessa época e, muitas vezes, os leitores não sabiam quem havia criado a narrativa diante de seus olhos. Cartier-Vinchon, por exemplo, foi autor da narrativa “A tempestade” (título original desconhecido), Enault, de “A boa educação recompensada” (“A quelque chose malheur est bon. Proverbe en action”), Masson, de “As doze pérolas do colar: simples lenda das escolas chinesas” (“Les douze perles du collier”). Já Audibert escreveu “O mercador de Zamora” (“Le marchand de Zamora”) e “Thalma ” (de mesmo título em francês).

A pena feminina também marcou presença. Além da já citada George Sand, no interior da revista localizam-se narrativas de Marguerite-Louise Virginie Ancelot,Laure Prus, Clemence Lalire, Angelique Arnaud e Sabine Casimire Amable Voïart (conhecida como Amable Tastu). Elas foram autoras, respectivamente, dos títulos: “Hortênsia e Leonor, ou as primas” (“Hortense et Eléonore, ou les cousines”), “As rainhas da Inglaterra. Mathilde esposa de Guilherme o conquistador” (título original desconhecido), “Não há grande que não precise de um pequeno” (“Le spetacle en famille: on a souvent besoin d’un plus petit que soi”), “O lago da guarda. Fragmento” (título original desconhecido) e “Uma página da biografia de Napoleão” (título original desconhecido). Junto a elas, encontram-se também Edmée de Syva, uma das redatoras do Journal de Demoiselles, que escreveu “Casamento por inclinação” (“Un mariage d’inclination”) e “Regina de Volberg” (“Régine, ou deux nuits. Opéra-comique en deux actes”), além de Evelyne Ribbecourt, autora dos textos “O voto das três irmãs” (título original desconhecido), “Ottilia. Crônica flamenga” (“Octilie, chronique flamengue”) e “Manfrida de Sorreze ou a expiação” (título original desconhecido).

Mas como justificar o fato de que escritores tão diferentes entre si tenham sido escolhidos para integrar as páginas do Novo Correio de Modas? Que, sendo do sexo masculino ou feminino, de grande ou pouco sucesso entre os leitores da época e lembrados ou não pelo público de hoje, todos eles tenham tido suas narrativas reproduzidas pela mesma revista? Um dos motivos para isso parece ser a recorrência de conteúdos moralizadores nos textos de tais autores, se não em todos aqueles que escreveram no decorrer de suas vidas, ao menos nos que apareceram no periódico carioca. De fato, a apresentação de normas de comportamento para as leitoras foi a grande preocupação das revistas dedicadas às mulheres publicadas no Rio de Janeiro em meados do oitocentos. Daí que os responsáveis pelo Novo Correio de Modas tenham privilegiado os autores franceses cujas narrativas ensinavam as mulheres a se comportarem de forma honrosa – o que ia, aliás, de encontro com as expectativas do público brasileiro da época para esse tipo de publicação.

Curiosamente, no entanto, foi um escritor de narrativas históricas, chamado Émile Marco de Saint-Hilaire, quem teve o maior número de textos publicados pelo Novo Correio de Modas. A revista publicou ao menos oito narrativas de sua autoria, a saber: “Giraldina” (“Une courtisane”), “O concerto na corte” (“Le concert à la cour”), “O colar da rainha Hortênsia” (sem título no original), “A carga de dragões” (“Une charge de dragons”), “A memória fiel” (“La mémoire acquittée”), “Na ilha d’Elba” (“Napoléon et sa garde à l’Ile d’Elbe”), “Os dois mais belos dias da vida” (“Les deux plus beaux jours de la vie”) e “O pequeno tambor” (“Souvenir de l’empire: ce qui prouve que le courage ne se mesure pas à la taille”). Todas foram retiradas de romances históricos que tratam da história da França, mais especificamente de acontecimentos ocorridos durante o governo de Napoleão, período utilizado por Saint-Hilaire para traçar um panorama da sociedade francesa e, sendo assim, têm ou o imperador ou uma pessoa próxima a ele como protagonista[5].

Depois de apresentar os autores franceses que integraram as colunas do Novo Correio de Modas, falta agora concluir com a abordagem do tema da tradução. No item a seguir fica claro que, mais do que simplesmente passar os textos de uma língua para outra, o trabalho dos tradutores compreendia também a adaptação deles para uma nova realidade e consequentemente para um novo público. 

 

III. E a tradução? 

          Wilfert-Portal (2013) defende a importância dos estudos sobre tradução literária para se compreender o modo como ocorria a circulação da literatura de um determinado país europeu para outro situado no mesmo continente entre o século XIX e início do século XX. Para o autor, a tradução literária é um fenômeno localizado simultaneamente entre o nacional e o internacional, uma vez que compreende um processo de deslocamento, não apenas de uma língua para outra, mas também de uma cultura, de um sistema literário e de uma sociedade para outra. E é justamente por seu caráter de fronteira que a tradução literária pode, a seu ver, elucidar as complexas dinâmicas que envolveram a inter-nacionalização da Europa, ou seja, o apogeu da ideia de nação em todo o continente que ocorreu ao mesmo tempo em que se constatava uma intensificação da conexão cultural dos países do Velho-Mundo.

Um processo semelhante foi observado no Brasil nessa época, pois a busca do tipicamente nacional na literatura, tão importante para os Românticos, se deu em paralelo à incrementação das trocas realizadas pelo país com o exterior. A tensão entre o nacional e o internacional foi muito recorrente na imprensa periódica oitocentista, o que se torna evidente inclusive nas páginas do Novo Correio de Modas. Isso porque, embora a presença da produção brasileira dentro do periódico tenha ficado bem atrás da estrangeira – representando pelo menos 6% do total ou 20 narrativas – e a apresentação de costumes, paisagens e tipos nacionais não tenha sido uma constante nos textos dos brasileiros que colaboravam em suas colunas, as interferências dos tradutores em relação aos originais revela a tentativa de adequação da cultura estrangeira para o gosto e o interesse do público leitor do país tropical.

Um exemplo disso são as quatro narrativas de Jean Nicolas Bouilly difundidas pela revista no decorrer de 1853: “Primeira inclinação” (“Première inclination”), “Quanto pode o amor materno” (“Abnégation de soi-même”), “Os dois métodos” (“Les deux méthodes”) e “Sacrifício eterno” (“Sacrifice éternel”). Todas foram extraídas da obra Les Mères de famille, publicada por Bouilly, em 1837, e procuram incutir o preceito de que as mães deveriam se concentrar nas necessidades dos filhos, abrindo mão de suas próprias vontades caso isso fosse preciso para garantir a felicidade de seus herdeiros.[6] Os tradutores inteferiram pouco nas três últimas narrativas, limitando-se à eliminação de alguns trechos, ao corte de determinados diálogos e à supressão das digressões do narrador – mudanças importantes, que serviram para enxugar o conteúdo, tornando-o mais compatível com um periódico que, em geral, fornecia textos curtos para suas leitoras. Apenas no caso de “Quanto pode o amor materno”, modificou-se também o título, que no original era“Abnégation de soi-même”.

Também escrita por Bouilly, a narrativa “Primeira inclinação” deixa mais evidente o trabalho do tradutor. O texto traz a história de Carolina Melval e Artur Valmont, dois jovens amigos que se conheciam há muitos anos, estavam profundamente apaixonados e pretendiam subir ao altar. Seus planos foram por água abaixo quando o pai de Artur morreu de desgosto devido a uma grande dívida contraída em seu nome. O rapaz decidiu entrar para a Marinha a fim de salvar a honra de seus familiares e Carolina acabou se casando com outro homem. Alguns anos mais tarde, Artur retornou à cidade. Carolina havia enviuvado e se empenhava em cuidar sozinha da educação do filho, um menino de sete anos, chamado Charles. O encontro dos antigos namorados reacendeu a paixão, durante tanto tempo proibida ao casal. Ambos estavam felizes e planejavam se casar o mais rapidamente possível.

É a partir daqui que se iniciam as diferenças entre a versão francesa e a brasileira. Na primeira, Carolina e Artur acabam novamente se afastando, porque a presença de Charles incomodava o marinheiro, já que o menino se parecia tanto física quanto psicologicamente com o pai. Arthur pretende utilizar sua fortuna para educar a criança em uma escola distante, longe da casa materna. Diante dessa situação, Carolina se vê obrigada a romper o relacionamento, mesmo que isso lhe cause uma profunda tristeza. Nenhuma súplica de Artur consegue abrandar o coração da protagonista, que se afasta definitivamente do antigo namorado. Por sua vez, a narrativa veiculada pelo Novo Correio de Modas termina com o casamento de Artur e Carolina, após a volta do marinheiro a sua cidade natal – situação que não se concretriza no texto de Bouilly. Toda a proposta de defesa dos interesses filiais acima dos desejos maternos desaparece das páginas do periódico. O que merece destaque na versão brasileira é o desenlace amoroso, a história de dois jovens enamorados cujo amor permaneceu vivo apesar da passagem do tempo, o que faz de “Primeira inclinação” uma narrativa muito diferente de “Première inclination”[7].

Se a diferença climática justifica as alterações realizadas pelos redatores da revista na seção Modas, no caso das narrativas fica difícil oferecer uma resposta precisa. Afinal, por que os textos em prosa de ficção made in France acabaram com títulos modificados, trechos cortados e, às vezes, até mesmo desfechos transformados quando transpostos para as páginas do periódico carioca? O número reduzido de suas páginas não parece ser um motivo suficientemente forte para justificar todas essas mudanças. Em relação à “Primeira inclinação”, especificamente, é possível imaginar algumas hipóteses: talvez o tradutor brasileiro quisesse oferecer as suas leitoras uma narrativa com final feliz, daí a reconciliação dos dois antigos namorados em sua versão modificada da história. Talvez tenha simplesmente preferido por gosto pessoal que a protagonista se casasse com aquele a quem havia jurado amor eterno. Talvez ainda tal desfecho estivesse mais de acordo com a linha editorial conservadora da publicação que, assim como os demais periódicos femininos lançados no Brasil nesse período, veiculou repetidas vezes a ideia de que as mulheres deveriam se manter leais e fiéis aos homens, fossem eles seus pais, namorados ou maridos.

De qualquer maneira, fica evidente que a cultura francesa não circulava de maneira aleatória no Brasil, mas dependia da mediação de algumas figuras (nesse caso, tradutores e redatores), responsáveis por selecionar os conteúdos estrangeiros que entrariam no país e ainda por adaptá-los a uma sociedade bastante diferente da europeia. Tal mediação parece apontar para a existência do que Wilfert-Portal (2013) chama de “identidade literária nacional”, haja vista que, ainda que partilhando dos mesmos referênciais literários que os franceses (lendo obras semelhantes e avaliando-as com critérios parecidos), esses profissionais foram capazes de nacionalizar aquilo que lhes pareceu demasiadamente estrangeiro, alheio à cultura brasileira ou mesmo impróprio para as leitoras da revista. 

 

Conclusão

          Como demonstrado ao longo deste artigo, diferentes conteúdos trazidos da França circulavam no Brasil em meados do século XIX, sobretudo na capital do Império, onde a entrada de ideias e notícias originárias do Velho Mundo ocorria de forma ainda mais intensa. Isso permitia que tanto em continente europeu quanto no país da América do Sul as pessoas se vestissem de forma semelhante e também se emocionassem, se divertissem e aprendessem com as mesmas intrigas. Quando aportava em terras brasileiras, entretanto, a moda francesa tinha que se adaptar ao clima tropical. O mesmo acontecia com literatura vinda desse país, que sofria uma série de mudanças, para além da tradução para a língua portuguesa. A conclusão que se pode chegar com isso tudo é que o Brasil da década de 1850 estava atualizado com o que ocorria do outro lado do Atlântico e agia de forma muito ativa na maneira como esses conteúdos culturais estrangeiros entravam em seu território, uma vez que eles somente eram postos em circulação depois de passarem por um processo de aclimatação que servia para torná-los compatíveis a sua própria realidade.

 

Notas

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(1) Este artigo é fruto da dissertação de mestrado Publicar ficção em meados do século XIX : um estudo das revistas femininas editadas pelos irmãos Laemmert, realizada sob a orientação da Profa. Dra. Márcia Abreu com apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp), em fevereiro de 2013.

(2) A esse respeito, conferir: Mançano (2010), Rocha (2011) e Schapochnik (1999).

(3) Os resultados completos dessa pesquisa podem ser consultados em: Donegá (2013).

(4) O primeiro número de “História espanhola contemporânea”, por exemplo, termina quando o protagonista está prestes a abrir uma misteriosa porta azul, o segundo, quando ele se depara com um corpo estendido no chão e o terceiro, quando procura se desfazer do cadáver sem ser descoberto. Para saber o que se encontra no interior do cômodo, de quem é o corpo descoberto e se a personagem conseguiu dar cabo em seu projeto, o leitor precisa acompanhar o restante da história no número seguinte.

(5) “O colar da rainha Hortência”, por exemplo, é protagonizada pela rainha Hortênsia de Beauharnais, esposa de Luís Bonaparte. Já “Giraldina” trata do caso de amor vivido entre Giraldina e o general Eugênio, que foi designado por Napoleão ao posto de vice-rei da Itália.

(6) Em “Quanto pode o amor materno”, por exemplo, aparece a figura de Sophia, uma jovem viúva que decide se casar com um homem por quem nutre um verdadeiro ódio motivada pelo interesse de oferecer aos filhos um novo pai.

(7) Conferir: Bouilly (1837: 55-58) e Novo Correio de Modas,1o. sem. de 1853, n. 11, p. 81-84.

 

Bibliografia

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Sodré Nelson Werneck (1999). História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro : Mauad.

 

Pour citer cet article

Ana Laura Donegá, « A revista Novo Correio de Modas (1852-1854) : Moda e literatura francesa com toque tropical », RITA [En ligne], N°7: juin 2014, mis en ligne le 26 juin 2014. Disponible en ligne : http://www.revue-rita.com/traitsdunion7/a-revista-novo-correio-de-modas-1852-1854-moda-e-literatura-francesa-com-toque-tropical.html