A cidade histórica no Brasil urbano: entre transformações e preservação
The historical city in urban Brazil: between transformations and preservation
Resumo
Diante da superurbanização que transformou o cenário mundial em menos de cinquenta anos, a preservação e a gestão de cidades e bairros históricos enfrenta renovados desafios, tanto de natureza conceitual como estrutural. No caso brasileiro, a análise comparativa de dados estatísticos de 2000 e 2010 mostra um quadro pouco estimulante no que tange ao comportamento geral dos núcleos históricos urbanos protegidos por legislação federal: apesar das ações sistemáticas de preservação e, inclusive, dos programas de investimentos realizados na década, a maior parte dos conjuntos urbanos contabiliza decréscimos populacionais, esvaziamento da função residencial, empobrecimento da população residente e altos índices de vacância de domicílios se comparados com a média nacional. Para contornar os problemas, parece indispensável ao Estado compreender suas causas, revisar conceitos, construir novas diretrizes de preservação e atualizar a estratégia de ação, lançando mão de instrumentos contemporâneos de planejamento urbano, com estímulos, por exemplo, a investimentos do setor privado, complementados por instrumentos de gestão que permitam o equilíbrio social.
Palavras chave: Patrimônio histórico urbano; Planejamento urbano; Política pública.
Abstract
With the over-urbanization that transformed the world scenario in less than fifty years, the preservation and management of historic cities and neighborhoods faces renewed challenges, both conceptual and structural in nature. In the Brazilian case, the comparative analysis of statistical data from 2000 and 2010 shows a less stimulating picture regarding the urban historic sets protected by federal legislation general behavior: despite the systematic preservation actions and even the investment programs carried out in the decade, most of the urban areas account for population decreases, emptying of the residential function, impoverishment of the resident population and high household vacancy rates compared to the national average.To overcome the problems, it seems indispensable for the State to understand its causes, revise concepts, construct new preservation guidelines and update its action strategy, using contemporary urban planning instruments, with incentives, for example, for private sector investments, complemented by management tools that enable social balance.
Key Words: Urban historic heritage; Urban management; Public policy.
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Maria Regina Weissheimer
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP)
Arquiteta do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
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Reçu : 20 octobre 2019 / Accepté : 28 juillet 2020
A cidade histórica no Brasil urbano : entre transformações e preservação
Introdução
Na década de 1960, o mundo contava com aproximadamente 3 bilhões de habitantes (United Nations, 2019), dentre os quais 33,8% residiam em áreas urbanas. No Brasil a transformação de uma sociedade rural para outra urbana começou na década de 1950, acelerando-se imensamente nas décadas de 1960 e 1970. Hoje, ainda que tenha ocorrido de forma desigual entre as diversas regiões do planeta, a consolidação do mundo urbano é fato consumado. Nos anos 2010 a população mundial havia mais que dobrado em relação aos anos 1960, computando 6,96 bilhões de habitantes (United Nations, 2019.a), dos quais mais de 50% residiam em áreas urbanas – 77,2% da população total das regiões mais desenvolvidas e 46,1% das menos desenvolvidas (United Nations, 2019.a). Estima-se que 68,4% da população mundial residirá em áreas urbanas em 2050.
O processo de urbanização das últimas décadas é fenômeno mundial que desafia pesquisadores e planejadores urbanos nos quatro quadrantes do globo. A rapidez da expansão e a dimensão territorial das manchas urbanas têm provocado reflexões profundas sobre a necessidade de remodelação do próprio conceito de cidade. Para pesquisadores como Germán Solinís, a cidade, enquanto lugar ideal de tensões dialéticas entre a vida social e suas formas, é hoje largamente ultrapassada pelo urbano, do qual ela oferece uma representação limitada das suas características objetivas e, ao mesmo tempo, uma referência simbólica ideal que permite, no melhor dos casos, projetar um horizonte de esperança utópica (Solinís, 2012:34).
[...] a atual dinâmica de urbanização, que difere profundamente da ideia subjacente de cidade ideal, parece tomar seus próprios caminhos, distantes das tendências de origem, obedecendo a outras regras e a outras lógicas. As aglomerações urbanas contemporâneas, sem forçosamente abandonar o princípio de coincidência com as imagens da cidade e sem a possibilidade de responder favoravelmente à suas normas, tendem a ser vistas como uma relação automática entre os graves desafios urbanos contemporâneos e uma cidade ideal transformada pela necessidade [...]. (Solinís, 2012: 36, tradução da autora)
Nesse contexto, os conjuntos urbanos históricos[1] figurariam como um quadro de exceção e, no âmbito da preservação do patrimônio urbano, se espera que continuem reproduzindo uma fórmula ideal de relação entre habitantes e território, conforme preconizado por documentos internacionais sobre o tema, dentre a Carta de Washington, de 1987:
Todas as comunidades urbanas, seja as que tenham se desenvolvido gradualmente ao longo do tempo ou as criadas deliberadamente, são a expressão da diversidade das sociedades ao longo da história. A presente Carta refere-se aos núcleos urbanos de caráter histórico, grandes e pequenos, incluindo cidades, vilas e bairros ou centros históricos, juntamente com seu ambiente natural e construído. Além do seu papel como documentos históricos, estas áreas carregam valores de uma cultura urbana tradicional. Hoje, muitas dessas áreas estão sendo ameaçadas, fisicamente degradadas, danificadas ou mesmo destruídas, pelo impacto do desenvolvimento urbano que seguiu a industrialização nas sociedades em todos os lugares. (ICOMOS, 1987)
Assim, a proteção dos núcleos urbanos históricos teria como objetivo central a preservação dos testemunhos materiais de uma espécie de cidade clássica, ou cidade enquanto lugar ideal de relações entre o corpo social e seu suporte físico, cuja origem varia, segundo o contexto histórico, econômico e geográfico, da Antiguidade ao primeiro ciclo da Revolução Industrial.
Os núcleos urbanos históricos carregariam implicitamente, para as gerações futuras, as qualidades Civitas e Urbanitas, epistemologicamente relacionadas à ideia de cidade. Segundo Solinís (2012), a primeira faz referência à qualidade, à condição e ao estado de cidadão (civilidade), bem como à comunidade da qual faz parte. A segunda diz respeito à qualidade do que é da cidade, urbanidade e polidez de costumes. O conceito de cidade possui, assim, conotações de excelência e carrega consigo traços de utopia e representações arquetípicas que não estão mais presentes nos assentamentos urbanos contemporâneos (Solinís, 2012: 34-35). Tais qualidades podem ser entendidas como pertencentes a uma “cultura urbana tradicional”, conforme preconizado na Carta de Washington.
Se, por um lado, o modelo atual de urbanização foge da ideia de cidade ideal, tal como definida por Solinís, por outro engendrou relações funcionais tão distintas que a cidade contemporânea não pode mais ser compreendida da mesma forma que a cidade pré-industrial:
[...] nosso conceito de cidade liga-se a uma forma de vida. Esta contudo se transformou a tal ponto que o conceito dela derivado já não logra alcançá-la.
Enquanto um mundo abarcável, a cidade pôde ser arquitetonicamente formada e representada para os sentidos. As funções sociais da vida urbana, política e econômica, privada e pública, da representação cultural e eclesiástica, do trabalho, do morar, da recreação e da festa, podiam ser traduzidas em fins, em funções de utilização temporalmente regulada dos espaços configurados. Contudo, no século XIX ao mais tardar, a cidade torna-se ponto de intersecção de relações funcionais de outra espécie. Ela é inserida em sistemas abstratos que, enquanto tais, não podem mais alcançar uma presença esteticamente apreensível. (Habermas, 1987 [1982]: 123)
Diante de um quadro perturbador de alteração das bases econômicas e sociais e de contínua expansão urbana, por um lado, acompanhado do esvaziamento populacional, funcional e simbólico dos núcleos urbanos históricos, por outro, os traços de civilidade e urbanidade – representados por uma relação íntima e particular das comunidades com o território que habitam, o que também pode ser definido como “espírito ou caráter do lugar” – de muitos dos bairros e cidades históricas parece tão ameaçado quanto sua integridade física.
Aos órgãos de preservação, talvez convenha revisitar o significado da cidade histórica em relação ao todo urbano, bem como os instrumentos utilizados para sua preservação. Afinal, que função têm ou terão os bairros e cidades históricas no mundo globalizado? Serão capazes, de fato, de sustentar seu valor simbólico na sociedade contemporânea e para as gerações futuras? É possível que ainda sirvam como molde ou exemplo para a qualificação das aglomerações urbanas contemporâneas, ou restarão apenas como testemunhos mais ou menos preservados de um passado cada vez mais remoto? Ainda são utopia, ou estão fadados a serem apenas memória? Acreditamos que a resposta dependa do modelo de gestão urbana adotado que, por sua vez, será consequência do entendimento sobre o próprio significado da cidade histórica.
Se desconectados funcionalmente do todo urbano, remanescerão, bem ou malconservados, como espaços de memória. Se funcionais, participando ativamente do cotidiano do todo urbano, podem adquirir novos significados, atualizados à vida contemporânea e, assim, continuar evoluindo como parte do organismo urbano em que se inserem. Para atingir os objetivos da segunda opção, que nos parece mais adequada, será preciso reforçar ou mesmo reconstruir laços funcionais e simbólicos, para os quais o rol existente de diretrizes de instrumentos de preservação do patrimônio necessita de atualização.
No Brasil, onde as taxas de crescimento urbano ainda são muito maiores e a proporção de núcleos urbanos reconhecidos ou considerados “históricos” é muito menor do que em países de regiões desenvolvidas, parece urgente rever alguns conceitos e critérios.
Para Solinís (2012: 38), a dicotomia entre o novo fato urbano e a cidade histórica é um dos maiores problemas das transformações sociais em curso, pois estamos na presença de novos fenômenos que continuamos a tentar entender por meio de velhas categorias, ultrapassadas pelos acontecimentos.
No caso dos conjuntos urbanos e cidades históricas, existem pelo menos dois níveis de questões a abordar. O primeiro é de natureza conceitual, e implica na reflexão sobre o que significa e qual deve ser o papel dos conjuntos urbanos históricos no mundo contemporâneo, já que estes não são mais a própria cidade, tendo sido tremendamente ultrapassados pelo fenômeno urbano. O segundo é de cunho operacional e deve conjecturar sobre quais são os instrumentos de gestão que, face à realidade atual, realmente podem convergir para a preservação, a conservação e o uso da cidade histórica pelas futuras gerações – e, em oposição, quais são os que, apesar de insistentemente em uso, não têm corroborado para alcançar a finalidade que pretendem.
O presente artigo aponta, assim, para a necessidade de uma reflexão atualizada e profunda sobre os conjuntos urbanos históricos, seus significados no contexto de urbanização global e seus modelos de gestão, com foco para o caso brasileiro. Apresenta, para isso, uma breve análise comparativa de dados estatísticos de 2000 e 2010 (IBGE), que mostra um quadro geral de esvaziamento populacional, altos índices de vacância e empobrecimento da população remanescente em parcela expressiva dos 78 conjuntos urbanos protegidos por legislação federal no Brasil.
Diante deste contexto, parece imperativo e urgente revisitar diretrizes e construir mecanismos que, vinculados às ferramentas de planejamento urbano, sejam capazes de estimular, por exemplo, investimentos privados e recobrar o dinamismo dos bairros, centros e conjuntos históricos nas cidades brasileiras.
I. Transformação e preservação das cidades históricas no Brasil
Dentre os documentos internacionais de referência, a Carta de Washington (ICOMOS, 1987) foi a primeira que centrou o foco nos núcleos urbanos de caráter histórico, grandes e pequenos, incluindo cidades, vilas, bairros ou centros históricos. Seu texto menciona elementos (materiais e espirituais) a preservar e que exprimiriam o caráter histórico da cidade: (a) a forma urbana definida pela trama e parcelamento; (b) a relação entre os diversos espaços urbanos; (c) a forma e o aspecto dos edifícios (estrutura, volume, estilo, escala, materiais, cores e ornamentos); (d) a relação da cidade com seu entorno; e (e) as diversas vocações que a cidade adquiriu no curso de sua história.
Documentos mais recentes, como os Princípios de La Valleta para a Salvaguarda e Gestão das Cidades e Conjuntos Urbanos Históricos (ICOMOS, 2011) e a Recomendação para a Paisagem Urbana Histórica (UNESCO, 2011), buscaram alargar o entendimento sobre os conjuntos urbanos de valor histórico e seus instrumentos de preservação, incluindo uma abordagem mais compreensiva que leva em consideração a natureza essencialmente mutante das cidades. No entanto, o rol proposto de ferramentas de gestão não consegue abarcar o grande dinamismo das transformações, especialmente em ambientes urbanos funcionalmente esvaziados e em processo ainda contínuo de degradação.
O esvaziamento funcional e populacional das áreas históricas urbanas, cenário comum no quadro brasileiro e que encontra nas capitais os exemplos mais críticos, é questão ainda mais perturbadora do que a transformação – muitas vezes natural – do caráter das cidades, e não parece que possa ser resolvida com a aplicação de critérios ou mecanismos tradicionais de conservação urbana.
Neste cenário, cabe o questionamento sobre se é possível reverter o processo, ainda em curso, de desuso e degradação das áreas históricas e, ao mesmo tempo, manter (ou mesmo retomar) seu caráter distintivo, incluindo as qualidades de civilidade e urbanidade que a diferenciariam da aglomeração urbana genérica.
A. Patrimônio urbano e transformações demográficas
No Brasil, a proteção do patrimônio histórico e, consequentemente, do patrimônio urbano, encontra sua origem na década de 1930, coincidindo com o momento histórico de construção de uma ideia de nação. Ouro Preto foi a primeira cidade histórica reconhecida como monumento nacional, assim declarada por decreto legislativo em 1933. Em 1937, o Decreto Lei no. 25/37 instituiu o tombamento como instrumento de proteção e deu início à política nacional de preservação sistemática de bens culturais pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional[2], incluindo os conjuntos urbanos e as cidades históricas. Já em 1938 foram tombadas as cidades mineiras de Diamantina, Mariana, Ouro Preto, São João Del Rei, Serro e Tiradentes. No âmbito dos conjuntos urbanos, as primeiras décadas foram dedicadas à proteção das cidades mineiras da região sudeste e, logo depois, das cidades históricas da região nordeste (Iphan, 2018).
Na seleção das cidades preservadas nos primeiros anos de existência do SPHAN transparece a ideia de um patrimônio urbano formado, primordialmente, pelas cidades de arquitetura luso-brasileira, representantes de um passado colonial idealizado. Trabalhava-se ainda com a ideia de “cidades monumento” que o declínio econômico havia, de certa forma, congelado no tempo, fazendo parecer relativamente fácil sua manutenção como testemunho do passado.
É importante ter em conta que a realidade urbana brasileira das primeiras décadas do Serviço de Patrimônio era muito distinta da atual, especialmente a partir dos anos 1970, quando o surto de expansão urbana passou a ser evidente em todo o país. À brusca transformação das cidades seguiu-se, como no restante do mundo, a ampliação das ações de proteção dos conjuntos urbanos e, não à toa, até a década de 1950 haviam sido tombados apenas 12 conjuntos urbanos, sendo que nas quatro décadas seguintes esse total mais que dobrou.
Gráfico 1: Tombamentos federais de conjuntos urbanos, por década e por região.
Em 1940, apenas 31,3% da população brasileira residia em áreas urbanas (IBGE). Duas décadas mais tarde, com quase o dobro da população recenseada em 1940, a proporção entre população urbana e rural começava a se inverter: 31,9 milhões de habitantes (45,3% do total da população) residiam em áreas urbanas e 38,7 milhões (54,7%) nas zonas rurais.
A década de 1960 marcou o momento da inversão desta proporção, atestando a consolidação do processo de expansão urbana do país. No censo de 1970, a população total era de 93,1 milhões de pessoas, das quais 55,9% residiam em áreas urbanizadas e 44,1% permaneceram nas zonas rurais. No censo realizado em 2010, a população brasileira somava 190,8 milhões de pessoas (quase o quíntuplo da população de 1940), das quais 84,4% residiam em áreas urbanas e apenas 15,6% em áreas rurais.
Portanto, entre 1940 e 2010, a população urbana cresceu 1.245%, explosão demográfica acompanhada do respectivo aumento das manchas urbanas. Também as cidades históricas foram tragadas pela rápida e crescente expansão urbana, como se pode ver pelos dados das Tabelas 1 a 5[3]. Neste contexto, não parece razoável que a gestão das áreas urbanas históricas siga acontecendo, com poucas adaptações, com os mesmos instrumentos utilizados desde os anos 1940.
As transformações demográficas denotam uma mudança profunda na própria estrutura da sociedade, e precisariam ser não apenas conhecidas, mas entendidas como mote para inflexão da estratégia de gestão dos conjuntos e cidades históricas.
Por exemplo, do ponto de vista de investimentos, no âmbito da política nacional de preservação do patrimônio urbano, a década de 2000 a 2010 foi marcada pela efetivação do Programa Monumenta[4], realizado através de contrato assinado entre o Ministério da Cultura e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. O contrato previa o investimento de 125 milhões de dólares pelo BID, com 30% de contrapartida por parte do Governo Federal e 20% dos municípios contemplados (Giannecchini, 2014: 5).
Foram 26 cidades históricas contempladas e, dentre as ações previstas, a criação de uma linha de financiamento de imóveis privados foi a grande inovação. O investimento na linha de financiamento foi, contudo, tímido se comparado com o montante global do projeto (menos de 20% dos recursos foram efetivamente destinados ao financiamento de imóveis privados) que, em termos gerais, centrou os investimentos na restauração de monumentos e imóveis isolados – o mesmo modelo de atuação que se repete atualmente com o PAC das Cidades Históricas.
Contudo, o que os dados dos censos de 2000 e 2010 apontam é que mesmo nas cidades que receberam investimentos do Programa Monumenta a tendência de perda populacional dos conjuntos históricos, acompanhada de altos índices de vacância, é evidente. Ou seja, embora com investimentos importantes, a questão urbana não tem sido tratada de forma eficiente.
Gráfico 2: Variação de moradores e domicílios nos conjuntos urbanos que participaram do Programa Monumenta
Gráfico 3: Ocupação de domicílios nos conjuntos urbanos do Programa Monumenta
Os dados demonstram que a política de preservação urbana em curso no Iphan não tem sido capaz de reverter o quadro geral que não é de estabilização e conservação, mas de esvaziamento e deterioração de parcela relevante dos núcleos históricos, especialmente nas grandes cidades.
Em muitos casos, é indispensável reconectar funcional e simbolicamente os centros históricos ao tecido urbano em contínua expansão, permitindo que as qualidades de civilidade e urbanidade possam continuar sendo encontradas nestes recortes urbanos. Em outros, reforçar os laços ainda existentes entre a população e a cidade tradicional o que, aparentemente, não acontecerá sem uma análise crítica das ações em curso.
A cidade de Ouro Preto, por exemplo, possuía uma população urbana de 14,6 mil habitantes no censo de 1940 (logo após o tombamento), contabilizando 32 mil moradores na década de 1970 e 61,1 mil em 2010. Conforme dados do censo de 2010, no “núcleo setecentista”[5], atual centro histórico da antiga Vila Rica, residem pouco mais de 12 mil pessoas.
Além disso, enquanto a população do conjunto protegido de Ouro Preto (que engloba encostas e ocupações recentes) aumentou 6,3%, o núcleo setecentista permaneceu estagnado, com ganho de 15 moradores entre 2000 e 2010. Mesmo dentro desta área existe disparidade, a depender da localização do setor censitário – os mais centrais, concentram maiores perdas, enquanto os acréscimos populacionais tendem a distribuir-se pelas bordas.
Figura 1: Variação de moradores entre 2000 e 2010 no centro histórico de Ouro Preto. Em laranja, setores censitários que perderam população, em verde os ganharam e em branco os que permaneceram estagnados.
Situação similar é vista em parte significativa dos conjuntos urbanos tombados em nível federal e, muito provavelmente, o cenário se repete em cidades e conjuntos protegidos por legislações estaduais e municipais. O caso de Ouro Preto, onde o núcleo histórico permanece dinâmico e importante à rotina diária da população local, não parece ser tão drástico quanto noutros lugares, especialmente nos centros históricos das capitais, como pode ser constatado nas Tabelas 1 a 5. Esta ruptura entre a cidade histórica e a aglomeração urbana contemporânea não retrata apenas a rápida e avassaladora transformação urbana do país, mas denota também que as cidades, bairros e conjuntos históricos perderam e continuam perdendo sua função social e, consequentemente, parte de seu significado na vida cotidiana da população.
Tabela 1: População urbana total e das áreas com proteção federal em municípios de até 20.000 habitantes (Fonte: IBGE)
Tabela 2: População urbana total e das áreas com proteção federal em municípios entre 20.001 e 50.000 habitantes (Fonte: IBGE)
Tabela 3: População urbana total e das áreas com proteção federal em municípios entre 50.001 e 200.000 habitantes (Fonte: IBGE)
Tabela 4: População urbana total e das áreas com proteção federal em municípios entre 220.001 e 400.000 habitantes (Fonte: IBGE)
Tabela 5: População urbana total e das áreas com proteção federal em municípios acima de 400.001 habitantes[6] (Fonte: IBGE)
Gráfico 4: Variação de moradores e domicílios nos conjuntos urbanos tombados no Brasil entre 2000 e 2010.
No Gráfico 4 é possível aferir a tendência geral de perda populacional, ainda que o ganho de domicílios seja considerável, reflexo da alteração no perfil da habitação das áreas históricas – com menor número de moradores por domicílio do que na década anterior.
Apenas a análise de casos individualizados permitirá aferir as causas e os reais efeitos dessas transformações. A depender do contexto, a perda populacional resulta no fechamento ou abandono de imóveis, implicando em processo de degradação física do ambiente urbano. Em diversas cidades brasileiras, esse processo encontra-se em curso há muitas décadas. Em outros casos, o decréscimo de população nas áreas históricas significa a transformação de usos a partir da modificação da base econômica local – especialmente onde a atividade turística é importante.
Nestes casos, convém avaliar os impactos do estímulo à atividade turística como único ou principal motor econômico de dinamização urbana. Veneza é o caso mundial mais paradigmático e demonstrativo de que uma horda de turistas não vem acompanhada de resultados positivos para a conservação do acervo edificado e, muito menos, para a manutenção do caráter do lugar. Sem uma gestão adequada, a população residente é a primeira que sofre e tende a abandonar a cidade. Em matéria de 1 de março de 2009, de Tom Kington, e intitulada “Who now can stop the slow death of Venice?” (Quem pode parar a morte lenta de Veneza?), o jornal britânico The Guardian afirmava que, enquanto uma cidade habitada, Veneza está morrendo. Com um pico populacional de 164 mil habitantes em 1931, a cidade histórica contabilizava cerca de 60 mil em 2009. Por outro lado, cerca de 20 milhões de turistas visitam a cidade todos os anos, numa média de 55 mil por dia, ou seja, é muito provável que, diariamente, haja mais turistas do que moradores em Veneza.
Voltando ao caso brasileiro, não há apenas uma grande disparidade entre o número total de habitantes de um município e seu núcleo histórico, mas boa parte dos conjuntos urbanos protegidos perdem população enquanto os demais setores da cidade ganham (ver Gráfico 2).
Gráfico 5: Variação da população urbana entre 2000 e 2010 (por município e por conjunto histórico tombado)
Exemplo emblemático é o de Paraty que, em 2000, tinha 14.066 moradores na área urbana e passou para 27.689 em 2010, ou seja, um ganho percentual de 96,9%. Contudo, a população dentro do sítio histórico decresceu, passando de 472 habitantes em 2000 (que correspondiam a 3,4% do total da população urbana do município) para 274 em 2010 (1% do total), o que significa uma perda relativa de 63,6% de moradores dentro da área tombada.
Também em valores absolutos Paraty é o núcleo histórico tombado pelo Iphan com o menor número de habitantes. Além disso, em 2010, a soma dos domicílios de uso eventual e desocupados representava 63,3% do total na área tombada (sendo 123 domicílios de uso ocasional e 29 vagos). A grande proporção de domicílios de uso ocasional em Paraty indica a forte relação do núcleo histórico com a atividade turística e de lazer regional, quadro totalmente distinto daquele encontrado em centros históricos como o de Recife, onde o esvaziamento da função residencial é completo.
Dentre as capitais, Recife computa a maior perda populacional no centro histórico (em números e relativos), com decréscimo de 49,7% da população residente nas áreas com proteção federal dos bairros do Recife e Santo Antônio entre 2000 (3.031 moradores) e 2010 (1.524 moradores).
A pesquisa empreendida por Menezes (2015) traz dados notáveis sobre o Recife, colocando em evidência o antigo e paulatino processo de esvaziamento da importância do papel do centro histórico na vida urbana da cidade, o que acarretou decréscimo populacional expressivo ao longo das várias décadas, resultando ao mesmo tempo em altos índices de degradação dos imóveis.
Tabela 6: Evolução da população nos bairros do Recife e Santo Antônio entre 1910 e 2010 (Menezes, 2015: 126)
Gráfico 6: Evolução da População nos bairros do Recife e Santo Antônio entre 1910 e 2010
Também o centro histórico Salvador teve redução expressiva no número de habitantes entre os anos 2000 e 2010, passando de 8.909 para 7.757 moradores.
Nos dois casos, o decréscimo populacional coincide com altos índices de desocupação. Em Recife, 33,2% dos domicílios são vagos, ou seja, totalmente desocupados, enquanto em Salvador essa proporção é de 17,5% do total – com setores censitários computando índices de até 40% de desocupação.
B. “Casa vazia, ruína anuncia”[7]
Dentre os dados estatísticos que dão pistas para avaliar o grau ou o tipo do processo de transformação urbana, o índice de vacância (que é a relação entre o número de domicílios desocupados e o total) é dos mais importantes. Quanto mais alto o índice de vacância de uma região, maior é o potencial de degradação do conjunto edificado e mais esgarçadas as relações sociais e simbólicas entre a população residente e o ambiente urbano. Os grandes índices de vacância são, geralmente, acompanhados da perda de habitantes e, em muitos casos, também do empobrecimento da população remanescente.
Tabela 7: Domicílios vagos ou ocasionalmente ocupados em conjuntos urbanos tombados pelo Iphan nas regiões Centro-Oeste e Norte (censos IBGE de 2000 e 2010)
Tabela 8: Domicílios vagos ou ocasionalmente ocupados em conjuntos urbanos tombados pelo Iphan na região Nordeste (censos IBGE de 2000 e 2010)
Tabela 9: Domicílios vagos ou ocasionalmente ocupados em conjuntos urbanos tombados pelo Iphan nas regiões Sul e Sudeste (censos IBGE de 2000 e 2010)
Segundo Bonduki (2018),
[...] as mais altas taxas de vacância estão em municípios estagnados do interior, sobretudo, do Nordeste e do norte de Minas. Cerca de 22% dos municípios perderam população na década passada. São cidades onde há casas vazias porque inexiste demanda. Ainda assim, a taxa de vacância (relação entre os domicílios vagos e o total) no Brasil urbano é de 8,2%. O número fica pouco acima da taxa de vacância natural, percentual necessário para o funcionamento “natural” do mercado, situada entre 5% e 6,5% (Belskya, 1992, e Jud e Frew, 1990).
O autor menciona estudo realizado na Universidade Federal da Bahia, que revelou que “um quarto dos domicílios classificados pelo censo do IBGE como vagos estava sem condições de habitabilidade” (Bonduki, 2018), o que reforça a ideia de que altos índices de vacância estão, muitas vezes, associados à má conservação dos imóveis, situação ainda mais dramática quando a tendência é de perda populacional. Por outro lado, mesmo que a maioria (três quartos) dos domicílios tenham condições de habitabilidade, não estão ocupados por razões que caberia aos órgãos de preservação aprofundar e considerar quando da formulação de planos e políticas de intervenção nas áreas, especialmente nas zonas onde a taxa de desocupação é alta e acompanhada de um processo histórico de despovoamento.
Figura 2: Variação de moradores entre 2000 e 2010 e densidade habitacional, conforme setor censitário, no centro histórico de Salvador/BA.
Gráfico 7: Variação de moradores e domicílios entre 2000 e 2010 no centro histórico de Salvador, conforme setores censitários (IBGE, 2000 e 2010)
Gráfico 8: Índice de vacância no centro histórico de Salvador, conforme setores censitários (IBGE, 2000 e 2010).
Dentre as cidades com conjuntos urbanos tombados pelo Iphan, apenas oito mantêm índices de vacância abaixo da média nacional, que é de 8,2%.
Já entre as capitais, todas possuem índices de vacância maiores que a média nacional. Cuiabá (MT) tem o mais alto índice de vacância (37,8% do total), seguida por Recife (33,2%), São Luís (29,8%) e João Pessoa (22%). Nessas, com exceção de São Luís do Maranhão, que ganhou domicílios entre 2000 e 2010, as demais perderam domicílios na década, sendo Recife o caso mais grave, com decréscimo de 38% no número de domicílios, passando de 1.045 em 2000 para 648 em 2010.
O processo de perda de domicílios significa a mudança no tipo de uso e ocupação das áreas históricas, em detrimento do uso residencial. Nestes casos, ainda que a transformação de uso possa apontar um caminho economicamente viável para a recuperação e conservação do acervo edificado, implica também na transformação radical do caráter do lugar e, mais importante, no empobrecimento das funções sociais mantidas no núcleo histórico.
C. Renda
Em 2010, mais da metade dos responsáveis por domicílios em conjuntos urbanos protegidos pelo tombamento federal possuíam renda de até 2 salários mínimos (aproximadamente 280 dólares[8]) mensais.
A grande maioria dos responsáveis por domicílios em conjuntos urbanos tombados na esfera federal ganhava por mês, em 2010, entre 5 e 10 salários (ou de 1.400 a 4.200 dólares) mensais, correspondendo a 36,8% do total. Outros 6,7% (5.928 pessoas) ganhavam mais de 10 salários mínimos (cerca de 4.200 dólares) mensais.
Existem variações regionais importantes, notadamente em relação à região Nordeste, onde 73,3% do total de responsáveis por domicílios na região ou não possuem renda (12,3%) ou ganham até 2 salários por mês (61%). Em números absolutos, isso corresponde a 22.980 pessoas, ou seja, 26,1% do total de responsáveis por domicílios em conjuntos tombados em todo o país.
A região Sul computa o maior número (em termos relativos) de responsáveis por domicílios em conjuntos históricos com ganho acima de 10 salários mensais (1.504 pessoas, ou 14,8% do total da região). Ainda assim, percebe-se um decréscimo significativo desse total em relação à década anterior.
Importante notar que, em números absolutos, o total de responsáveis por domicílios nos conjuntos tombados com ganho mensal de até 2 salários aumentou em relação à década anterior em todas as regiões, ao mesmo tempo que o total de responsáveis com renda acima de 10 salários decresceu. Este é um cenário que, possivelmente, acompanha a tendência nacional na década e, no quadro dos conjuntos históricos, é um fator a mais de complicação para a conservação dos imóveis – que tende a ser mais onerosa do que em outros recortes urbanos.
Tabela 10: Perfil socioeconômico dos responsáveis por domicílios em conjuntos urbanos tombados
Conclusões
Pensar sobre centros históricos no Brasil nos leva a duas visões distintas: a primeira vê a problemática dos centros históricos sob o prisma das grandes cidades, onde os mesmos se encontram imersos em vastos e complexos tecidos urbanos. O segundo trata dos núcleos que, por vezes, correspondem à totalidade dos distritos-sede dos pequenos e médios municípios e que ainda mantêm fortes relações de centralidade comunitária, institucional e econômica. Para cada uma destas realidades urbanas, as modalidades de desenvolvimento econômico em vigor normalmente percebem o patrimônio edificado apenas pela premissa das restrições urbanísticas e arquitetônicas. Pode-se admitir que essa visão deriva tanto de visões desinformadas do que ocorre no mundo, onde a requalificação de áreas centrais é ação que une planejamento estratégico das cidades com importantes oportunidades de investimentos e negócios, mas também da ortodoxia e pouca maturidade urbanística das áreas públicas de planejamento e preservação do patrimônio. Contudo, se esses mesmos órgãos públicos assumirem as iniciativas de propor novas visões e correlações, rapidamente a percepção restritiva pode ceder lugar às oportunidades – tornadas gritantes pelos abandonos e degradações atuais. (Vieira Filho e Da Guia, 2011: 42).
No Brasil, a proteção de cidades e conjuntos urbanos históricos acompanhou a tendência mundial e foi impulsionada, a partir da década de 1970, pelo rápido e chocante processo de urbanização. A preservação de conjuntos urbanos históricos teve como objetivo primordial conter o processo de transformação que, nos últimos cinquenta anos, mudou o cenário de vida da maior parte da população mundial. Na prática, as ações buscavam impedir o desaparecimento de bairros e cidades históricas. A partir dos anos 1980, a proteção de áreas urbanas históricas deixou de ser, em muitos países, um ato essencialmente defensivo para integrar-se ao planejamento urbano estratégico. Desde então, muitos projetos e planos de requalificação foram postos em prática a favor da continuidade da utilização das áreas históricas – ainda que com enfoques e resultados variados – e da consequente conservação do acervo edificado.
A análise dos dados dos censos de 2000 e 2010 (IBGE) de 63 dos 78 conjuntos urbanos protegidos em nível federal no Brasil permite aferir a tendência de esvaziamento populacional e vacância dos conjuntos históricos, em contraposição à tendência de contínua expansão da malha urbana, com crescimento populacional ainda significativo, dos próprios municípios onde estão inseridos.
Em geral, existem cada vez menos moradores nas áreas urbanas protegidas o que, do ponto de vista conceitual, implica em um distanciamento simbólico cada vez maior entre o todo urbano e a cidade histórica e, do ponto de vista material, pode levar ao agravamento do estado de conservação do acervo edificado.
Mesmo investimentos concentrados e importantes, como os do Programa Monumenta, executado entre 2000 e 2010, não influenciaram na curva de declínio demográfico que caracteriza parcela significativa dos conjuntos urbanos históricos no Brasil. Uma das hipóteses de reversão desse quadro estaria no aperfeiçoamento do modelo de gestão que, do ponto de vista de investimento, é atualmente baseado na alocação recursos públicos e na ação pontual – por tempo determinado e voltada, muitas vezes, para a recuperação de monumentos individuais.
Para uma ação de escala urbanística, seria imprescindível considerar os dados estatísticos e demográficos das áreas protegidas (o que não costuma ser feito nem na construção de normativas, nem no desenvolvimento de projetos de intervenção), buscando soluções que objetivem tanto a preservação de valores estéticos e a melhoria da conservação física do acervo edificado, quanto a manutenção ou a retomada da vitalidade social e econômica dos conjuntos urbanos históricos. É imperativo reverter a tendência de despovoamento que caracteriza muitos núcleos protegidos para que possam, de fato, ser preservados e fazer parte da cidade como um todo.
Nesse sentido, os projetos de investimento público deveriam ser complementados por mecanismos de gestão urbana e linhas de fomento capazes de estimular o investimento privado e a dinamização econômica das áreas tombadas, com especial atenção para a função residencial. Ao mesmo tempo, é indispensável manter a diversidade social e valorizar os moradores antigos.
Os dados empíricos demonstram que a preservação dos conjuntos históricos não acontecerá apenas pela imposição de restrições (normas, fiscalizações, sanções) que visam unicamente a manutenção de valores estéticos e por investimentos públicos – importantes, porém pontuais – que caracterizam a política nacional, mas por ações urbanísticas mais abrangentes.
A legislação brasileira de proteção (Decreto Lei nº. 25/37) não instituiu e nem previu a criação de instrumentos de fomento, subsídios ou fundos para investimentos em imóveis particulares – nem nos de propriedade pública. E foi apenas com a Lei 10.257/2001, o Estatuto das Cidades, que se deu início a uma política federal sistemática voltada para o planejamento urbano, onde a proteção das áreas históricas figura como uma das diretrizes gerais, mas é bastante incipiente.
Nos EUA, por exemplo, a promulgação do National Historic Preservaction Act de 1966 foi acompanhada, na sequência, da criação de instrumentos de incentivo fiscal e subsídios para investimentos privados no patrimônio histórico protegido, gerando grande interesse pela política de preservação do patrimônio urbano em virtude de suas recompensas econômicas. Ainda que, em muitos casos, os projetos de renovação urbana tenham acarretado transformações estruturais significativas, com alteração do perfil socioeconômico da população residente, o que implica, por vezes, na expulsão dos moradores de renda mais baixa (processo conhecido como gentrificação), a existência de subsídios é fundamental para que a política de preservação se concretize e a necessidade de aprimoramento dos instrumentos parece não ter sido ignorada pelos órgãos consultivos (Advisory Council on Historic Preservation, 1986).
No caso brasileiro, ao menos no que tange às políticas da esfera federal, os instrumentos de conservação e gestão do patrimônio urbano pautam-se, ainda, por ações centradas na proteção, regulação e controle, cujas bases conceituais fundamentam-se na limitação de alturas, conservação de volumetrias e manutenção de elementos arquitetônicos, além do ideal de manutenção dos habitantes “tradicionais”, alicerçadas em documentos internacionais produzidos a partir da década de 1960 – notadamente a Carta de Veneza (1964), a Resolução de Budapeste (1972), a Declaração de Amsterdã (1975) e a Carta de Washington (1987). Na segunda metade do século 20, todas as diretrizes de preservação do patrimônio faziam frente a ações de grande transformação urbana, momento em que a conservação das áreas históricas estava em risco em virtude de um processo de planejamento e expansão das cidades que ainda prezava pela suburbanização e pela substituição das estruturas antigas. Passados mais de cinquenta anos, a conservação de muitas áreas urbanas históricas continua em risco, agora em razão de processos de vacância, abandono e despovoamento, relatados nos mais diferentes contextos urbanos (dos países desenvolvidos aos países em desenvolvimento).
Se, por um lado, a crença neoliberal de autorregulação do mercado tem-se demonstrado um complicador das questões sociais nas áreas patrimoniais, por outro, o ideal de um Estado financiador, grandemente intervencionista, não consegue reverter a curva das problemáticas urbanas, inclusive no que se refere às áreas históricas e, principalmente, nos países em desenvolvimento.
No Brasil, os instrumentos de controle e as estratégias de investimento precisariam ser reavaliados face à realidade desconcertante de que, apesar dos incomensuráveis e necessários esforços empreendidos pelo poder público federal, a efetiva preservação dos conjuntos urbanos históricos brasileiros está longe de um patamar ideal.
Além disso, se aceitarmos que a função residencial desempenha um papel central na preservação do caráter do lugar dos núcleos urbanos históricos, pois apenas a permanência possibilita a criação de laços sociais com o território, então as ações de gestão dos conjuntos urbanos tombados precisariam ir além do tradicional sistema de controle e investimentos pontuais. Os dados – não apenas brasileiros – têm demonstrado que, frente às transformações da sociedade e do todo urbano, as políticas conservadoras de proteção de núcleos históricos têm, em alguns casos, surtido o efeito reverso do desejado (Miceli e Pellegrinni, 2018 e 2019), impelindo a população residente para fora das áreas protegidas, ao invés de incentivar sua permanência. Neste contexto, a ação primordial precisaria ser de estímulo ao uso, mais do que de regulação e controle.
Assim, propõe-se recolocar os problemas da preservação e da gestão das áreas urbanas históricas a partir do prisma urbanístico. Consideramos ser necessária uma discussão profunda sobre a aplicabilidade atual de ferramentas e diretrizes forjadas para enfrentar desafios que já fazem parte do século passado. É preciso compreender os desafios do presente para que os conjuntos protegidos possam continuar fazendo parte do futuro, do contrário, a preservação é pura ideologia e os conjuntos históricos sobreviverão apenas como cenários urbanos.
Notas de fim
[1] Entendidos, de acordo com a Carta de Washington, como núcleos urbanos de caráter histórico, que podem ser vilas, cidades, centros ou bairros históricos. Ao longo do texto, utilizaremos estas denominações para falar dos recortes urbanos cujo caráter histórico seja reconhecido através de políticas de patrimonialização.
[2] Atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
[3] As tabelas e mapas a partir de dados dos censos de 2000 e 2010 foram produzidas pela autora no âmbito de pesquisa de doutorado em curso.
[4] O Programa Monumenta foi o primeiro programa de grande escopo executado desde o Programa de Cidades Históricas (PCH), realizado na década de 1970 e voltado para o desenvolvimento turístico das cidades históricas da região Nordeste.
[5] Núcleo central e mais antigo do assentamento histórico de Ouro Preto.
[6] Os dados de Florianópolis não correspondem às áreas protegidas pelo Iphan, mas sim às Áreas de Preservação Cultural do centro histórico, conforme o Plano Diretor do município.
[7] Tese defendida pelo arquiteto Cyro Corrêa Lyra, que atuou durante mais de três décadas junto ao Iphan, e fez uma análise do histórico da atuação do órgão federal na conservação de bens tombados e de intervenções realizadas pelo Programa Monumenta. O autor conclui que, mesmo realizadas sob os auspícios do órgão de preservação, a destinação das edificações restauradas a um uso (preferencialmente um uso adequado) foi questão muitas vezes deixada em segundo plano, resultando em prédios desocupados, mesmo após as custosas obras de recuperação. Esse modelo acarreta ciclos de degradação e restauração que não correspondem à uma solução eficaz para a preservação de edificações e conjuntos históricos.
[8] Para possibilitar o comparativo, a conversão de moedas foi realizada, em todos os casos, considerando a cotação média do dólar no ano de realização do censo.
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Pour citer cet article:
Maria Regina Weissheimer, "A cidade histórica no Brasil urbano: entre transformações e preservação", RITA [en ligne], n°13 : novembre 2020, mis en ligne le 10 novembre 2020 . Disponible en ligne: http://revue-rita.com/dossier-13/a-cidade-historica-no-brasil-urbano-entre-transformacoes-e-preservacao-maria-regina-weissheimer.html