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A poesia de Gilka Machado e a crítica literária da Belle Époque brasileira 

La poésie de Gilka Machado et la critique littéraire de la Belle Époque brésilienne

Resumo
Este artigo tem por objetivo analisar a relação que se estabelece entre a poesia de Gilka Machado e o campo intelectual do Rio de Janeiro do início do século XX, período que a historiografia especializada identifica como a Belle Époque brasileira. Nessa perspectiva, investigamos a recepção dos críticos literários à obra da autora, realizando uma comparação com a produção de autoria feminina que lutava por espaço e legitimação. A metodologia de pesquisa utilizada consiste no estudo de crônicas publicadas em periódicos da época, realizando uma reflexão sobre as questões enfrentadas pelas poetas, como o confronto à enunciação tradicional e à temática da musa em seus poemas. Como resultados, averiguamos que a crítica literária da Belle Époque brasileira utilizava padrões limitantes para avaliar a literatura escrita por mulheres, oscilando entre um olhar condescendente e uma postura excludente.

Palavras-chave: Gilka Machado; Poesia; Crítica brasileira.

Résumé
Cet article vise à analyser la relation établie entre la poésie de Gilka Machado et le champ intellectuel de Rio de Janeiro au début du XXe siècle, période que l'historiographie spécialisée identifie comme la Belle Époque brésilienne. Dans cette perspective, nous avons étudié l'accueil réservé par les critiques littéraires au travail de l'auteure, en lien avec la production des écrivaines qui se battaient pour l'espace et la légitimité littéraire. La méthodologie de recherche utilisée consiste à étudier les chroniques publiées dans les périodiques de l'époque, en menant une réflexion sur les enjeux littéraires pour les poétesses : comme la confrontation à l'énonciation traditionnelle et au thème de la muse dans leurs poèmes. En conséquence, nous avons constaté que la critique littéraire de la Belle Époque brésilienne utilisait des critères particuliers pour l’évaluation de la littérature écrite par des femmes : oscillant entre un regard condescendant et une posture d’exclusion.

Mots clés : Gilka Machado; Poésie; Critique brésilienne.

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Suzane Silveira

Doutoranda em Literatura Brasileira
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura (NIELM)

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Reçu le 11 octobre 2020/Accepté le 12 juillet 2021

A poesia de Gilka Machado e a crítica literária da Belle Époque brasileira

Introdução

          Analisar a relação entre a produção de autoria feminina no período da Belle Époque brasileira e sua recepção crítica é adentrar o pensamento discriminatório contra a mulher vigente no século XIX e a construção de um imaginário em torno da literatura produzida por mulheres, uma vez que o difícil acesso à educação formal e aos meios de publicação e de divulgação de livros, disponíveis às escritoras, eram limitados. Paralelamente, podemos observar uma grande expansão do número de autoras no final do século XIX e início do XX (principalmente em matéria de poesia) colocando para a sociedade a questão da mulher escritora. Esse fato motivou a opinião reacionária da crítica literária, dividida entre um olhar condescendente – que admirava a obra, mas procurava separá-la da vida da autora como se essa dissociação preservasse a integridade moral da artista; e uma crítica mordaz – que buscava coibir a produção de autoria feminina, à procura de espaço e viabilização. Assim, mesmo os críticos que se mostravam apreciadores da qualidade dos livros das autoras condenavam o seu conteúdo, especialmente aqueles com teor erótico, como é o caso de Gilka Machado.

Com isso, a literatura de autoria feminina apresentou um verdadeiro problema de cunho ético e teórico para a crítica da época, cujas leituras partiam principalmente de aspectos biográficos das autoras. Não foi à toa, portanto, que o livro Cristais partidos, publicado em 1915 por Gilka, provocou sentimentos simultâneos de fascínio e fúria na crítica da Belle Époque brasileira. Tal furor deveu-se não só à temática sensual dos versos, mas, sobretudo, ao questionamento direto e indireto do lugar da mulher em uma sociedade que a incapacitava intelectualmente, privando-a dos meios efetivos de seu livre desenvolvimento criativo e artístico. A nossa proposta oferece um novo olhar sobre a dinâmica presente no campo literário da virada do século XIX e início do XX, pois se propõe a investigar o jogo de interesses que permeava a intelectualidade brasileira em vias de consolidação de suas instituições legitimadoras, como a fundação da Academia Brasileira de Letras em 1897 – o que resultou na exclusão de muitas autoras do cânone nacional e na posição subalterna da literatura de autoria feminina na historiografia literária. Ademais, analisar a obra de Gilka Machado é relevante, pois a autora subverteu alguns importantes paradigmas na poesia escrita por mulheres do período: como a relação com a convenção da musa e a delimitação da marca de gênero no sujeito da enunciação, apresentando, assim, um eu-lírico feminino que fala a partir das experiências e sensações de um corpo de mulher.

I. A recepção dos críticos da Belle Époque brasileira e o problema da poesia máscula

     Conforme aponta Brito Broca, em A vida literária no Brasil – 1900 (1975), o fim do século XIX e início do XX foi um momento profícuo de expansão literária de autoria feminina, fruto das transformações – ainda que lentas – na mentalidade, na imprensa e no trabalho de educação das mulheres, possibilitando o seu acesso ao mundo das letras e da intelectualidade da Belle Époque. Período que, conforme aponta Jeffrey Needell, em Belle Époque tropical (1993) estendeu-se aproximadamente da proclamação da República no Brasil, em 1889, até à Semana de Arte Moderna em 1922, quando a sociedade fluminense experimentou uma efervescência econômica e cultural.

Segundo aponta a pesquisadora Sylvia Paixão (1990), a crítica literária sempre se manifestou com um olhar condescendente em relação à mulher que escrevia no século XIX, contribuindo, de certa forma, para que a produção literária de escritoras se apresentasse como um sinal-a-menos. O sentido dessa diferença estava baseado no preconceito de gênero que distinguia a produção de autoria masculina com critérios como “cerebral” e “universal”, de uma escrita de autoria feminina que trataria apenas de questões específicas das mulheres como a maternidade e o amor. Esse processo discriminatório influenciou de modo significativo a produção de autoria feminina com reflexos até os dias atuais no sentido de direcionar a recepção às obras de escritoras sempre dentro de uma chave estereotipada de gênero com certos temas, considerados próprios “à fala da mulher”.

Desse modo, ao tomarmos como campo de análise o Rio de Janeiro da então Capital Federal, podemos perceber que aí se manifesta uma situação pitoresca na recepção à produção literária das mulheres. Se, por um lado, há certa condescendência na leitura dos críticos homens a respeito das escritoras, por outro lado há uma crítica feroz a esse comportamento considerado “desviante” segundo as normas e parâmetros de uma sociedade patriarcal. Notamos, contudo, que ambas as abordagens se inserem dentro de uma dialética político-ideológica: a mulher escritora brasileira surgia como signo de progresso, sendo frequentemente comparada às americanas e às britânicas, e modelo de uma nova conduta de mulher cidadã e participante da vida culta que a recente instaurada República suscitara – imagem que alguns críticos assumiam em “defesa” das escritoras.

Paralelamente a essa visão, segundo Dal Farra (2014), a expectativa de emancipação das mulheres por meio da transição para um regime mais democrático foi frustrada, uma vez que a República propunha cidadania para os homens e maternidade para as mulheres. Segundo a pesquisadora, existia um medo generalizado de que a mudança de postura da mulher, e sua consequente saída do claustro do lar e independência intelectual e financeira, desestabilizasse por completo a estrutura social que era baseada em sua submissão e servidão. Deu-se, pois, um fato curioso na crítica literária de autoria masculina do período, que apresenta uma análise esquizofrênica da produção feminina: elogiam os livros das autoras – que classificam como exceção de pensamento, já que a ação de pensar era tida por eles como atributo masculino – certificando-se de separar vida e obra das escritoras, numa tentativa de preservar uma pretensiosa pudicícia dessas mulheres, mesmo que o seu ato de escrita fosse francamente transgressor.

Podemos citar, como exemplo dessa empreitada, uma crônica[1] de Monteiro Lobato publicada no Correio da Manhã do 23 de julho de 1920, intitulada “Em pleno sonho”, em que discorre sobre a produção literária feminina do início do século novecentista. O texto se inicia com um tom aparentemente otimista em relação à produção feminina que surgia, afirmando que as modernas escritoras não mais apresentavam em seus trabalhos o aspecto lamurioso ou suspirante de antes: “Outrora, no Brasil de anquinhas, ser poetisa era suspirar (...) Hoje tudo mudou. Se há suspiros é em casa de doceiras: clara d’ovo batida com açúcar e assada em pingões ao forno” (Lobato, 1920: 2). Entretanto, aquilo que poderíamos supor como uma novidade inspiradora para o autor de Sítio do pica-pau amarelo é considerada por ele como um decréscimo.

Suspiro poético, arrancado do imo d’alma, à força de contrações do diafragma e sibilo de nariz, isso morreu, saiu da moda, acabou. E é pena. Se não tinha graça num marmanjão de cabeleira que morria hético aos 20 anos, tinha-a de mais nas representantes do sexo hoje ex-frágil, cujos corações não eram consultados nem para o negócio supremo das suas vidinhas: casar (Lobato, 1920: 2).

O modo sarcástico com que o crítico defende a sua visão, tecendo a argumentação de que, ao equipararem-se ao escritor homem, as autoras perderam certa “aura” que as distinguia como “seres fatais” é emblemática da crítica condescendente que apresenta a estratégia de enaltecer uma figura idealizada de escritora, justamente para alijá-la de qualquer seriedade ou efetiva participação social: “(...) assim também a poetisa desfatalizou-se e não há mais discerni-las à janela pelo negror das olheiras, nem à noite pelo modo canino de ferrar o olho na lua” (Lobato, 1920: 02). Com isso, Lobato apresenta, paradoxalmente, como defeito das obras das autoras justamente o fato de serem mulheres, o que as levaria a extrapolar a emoção poética em uma contraditória “sensibilidade feminina”, tornando-as inaptas ao ofício da escrita. É evidente que essa forma de crítica condescendente tem por base as desigualdades sociais de gênero, o que transparece na análise do crítico José Oiticica (que assinava os seus textos sob o pseudônimo de G.B.) em crônica sobre o primeiro livro de Gilka Machado, publicada no periódico Correio da Manhã em fevereiro de 1916. Na crítica de Oiticica, apesar de ressaltar as qualidades artísticas, segundo ele louváveis de Cristais partidos, afirma que o livro não é uma leitura recomendada para “moças” e se configura, em sua opinião, como um sintoma maléfico da falta de educação religiosa das meninas. Com isso, relata, como consequência da ausência de um ensino cristão, o suicídio de adolescentes que alarmava pelo número de casos, preocupando as mães da época.

O livro de D. Gilka Machado é a revelação de uma belíssima artista, de uma poetisa de primeira ordem. Pena é que seja, ao lado disso, um triste sintoma destes tempos. Vê-se que a falta de educação religiosa está a produzir outros frutos além do suicídio de adolescentes cansadas do sofrimento de quatorze ou quinze anos de vida, ao lado de bonecas e de papás. O conde Affonso Celso, em carta recentemente publicada, com grande calor aplaudiu a autora dos Cristais Partidos, felicitando-a pelo seu triunfo. As mães que com tanta razão confiam na opinião do eminente escritor católico devem ficar sabendo que ele só considerou o livro como obra de arte. Como obra de arte é realmente um triunfo. Mas não é uma leitura para meninas (Oiticica, 1916: 2).

Na passagem acima, é notória a preocupação de José Oiticica em separar o livro de Gilka, enquanto obra de arte, de seu conteúdo temático que ele não considera “uma leitura para meninas”. Com isso, é importante observar que o crítico possui uma visão moralizante da leitura para mulheres, levando a crer que deve ter um caráter doutrinador ou domesticador. Por isso, admite serem os Cristais partidos um triunfo, porém, ao mesmo tempo, afirma que o livro é um sintoma da falta de educação religiosa das meninas. É muito sutil, portanto, o modo como o crítico desqualifica a obra relacionando-a ao suicídio de jovens e, por consequência, colocando a escrita de mulheres como um fator de perversão da sociedade, por isso enfatiza o “alerta às mães”.

Ora, o sofrimento dessas jovens, evocadas por Oiticica, pode na verdade ser fruto não da ausência de educação religiosa, mas justamente da opressão e controle sociais reafirmados pelo próprio discurso do crítico. Segundo nos apontam as críticas feministas estadunidenses Sandra Gilbert e Susan Gubar (2017: 203-204) em “Infecção na sentença: a escritora e a ansiedade de autoria”, capítulo de The Madwoman in the Attic, as consequências maléficas para a sanidade mental, e até mesmo física, das mulheres por conta da obrigatoriedade de (sobre)viver em uma sociedade que as adverte de que serão monstros se não se comportarem como anjos são o imobilismo e o colapso nervoso. No referido texto, Gilbert e Gubar analisam como o processo de escrita entre homens e mulheres diverge, uma vez que, enquanto o escritor tenta se distanciar dos autores homens anteriores – o que será nomeado de “ansiedade de influência” por Harold Bloom em A angústia da influência: uma teoria da poesia (2002) –, a mulher, a princípio, tem sua presença marcada na literatura com personagens estereotipadas. A escritora sofreria, assim, segundo as pesquisadoras americanas, de “ansiedade de autoria”, pois, diferentemente do homem que sente medo de não ser original, a mulher teria medo “de não poder criar, de que, porque ela nunca poderá vir a ser uma ‘precursora’, o ato de escrever irá isolá-la ou destruí-la” (Gilbert e Gubar, 2017: 1993). Assim, essa ansiedade seria intensificada pela necessidade de combater os predecessores homens, resultando na experimentação de sua própria identidade e na busca por um modelo feminino para se autenticar no espaço literário.

Como Oiticica, o crítico Agrippino Grieco expressa em ensaio intitulado “As poetisas do segundo Parnasianismo”, publicado em Evolução da poesia brasileira em 1947 pela editora José Olympio[2], afirma que a subjetividade feminina confrontadora da poesia de Gilka não deve ser confundida com a pessoa real da escritora, que não se comportaria, segundo ele, como uma “madama desabusada”, ou seja, não seguia a tendência de algumas feministas mais radicais do início do século XX que vestiam roupas masculinas e podiam ser vistas fumando charuto e usando binóculo e gravata. É sintomática também a grafia errada do nome da autora – fato que se percebe também em outras antologias da época – e que pode denotar certo desconhecimento efetivo de sua obra.

Queremos falar da sra. Gilca (sic) da Costa Machado. Objetarão em seus poemas uma inversão de papéis, apressando-se ela em dizer aos homens, como poetisa, certas coisas que devia esperar que eles lhe dissessem primeiro. Mas isso é apenas nos domínios da arte e, em sua vida modesta e altiva, nunca ninguém a viu tomar a atitude de certas madamas desabusadas – misto de sabichonas de Molière e de bas-bleus de 1830 – que pretendem adotar as maneiras masculinas, virando ulanos de saias, usando gravata e monóculo, fumando pelos botequins, quase indo ao extremo de andar travestidas pelas ruas, como fazia em Paris a quinquagenária Jane Dieulafoy, esposa de um célebre arqueólogo e ela mesma uma raridade de arqueologia (Grieco, 1947: 93-94).

II – A questão da musa na poesia da Belle Époque brasileira

      No cerne da discussão entre poesia e gênero proposta por escritoras, como Gilka Machado, no início do século XX, está a concepção da musa na poesia e o confronto ao enunciado poético tradicional. As nove Musas (Calíope, Clio, Erato, Euterpe, Melpômene, Polímnia, Tália, Urânia e Terpsícore) eram, dentro da mitologia grega, as entidades divinas que inspiravam cada qual uma arte diferente nos humanos – matriz para a noção de musa da poesia ocidental. Dentro dessa concepção, a figura feminina serviu, durante um longo tempo, apenas como inspiração para os homens, pois eram estes que possuíam os meios de produzir arte enquanto as mulheres, as silenciosas criaturas observadas, eram os temas de suas criações. Em relação a Safo de Lesbos (630 a.c.-580 a.c.), uma das mais conhecidas escritoras da tradição clássica grega, a fim de resolver esse “paradoxo” convencionou-se chamá-la pela contraditória alcunha de “a décima musa”, como podemos notar na famosa epigrama atribuído a Platão: “Dizem que há nove musas, que falta de memória! Esqueceram a décima, Safo de Lesbos” (Waltz; Soury, 1960: 63).

No Brasil do final do século XIX, o ideal da musa foi retomado fortemente pela escola parnasiana, que buscava recuperar elementos da poesia grega clássica. E, nessa retomada de estilo de escrita, o conceito de musa foi utilizado por muitos críticos como modelo de mulher: uma estátua muda e impassível, responsável por provocar nos homens poetas deliciosos e destruidores sentimentos. Essa visão equivocada foi utilizada, como demonstra Nádia Gotlib (2016), para defender a posição de que a poesia era uma atribuição masculina e, quando raras vezes se manifestavam “espíritos ardentes de escritoras”, estas deveriam escrever como se fossem homens. Conforme aponta Nádia, para sustentar essa tese o crítico e escritor gaúcho Leal de Souza utilizou como “musa suprema” a poetisa parnasiana Francisca Júlia (1871-1920), a qual gozava de prestígio nos meios literários do início do século XX. Na sua análise, a poesia “máscula” de Francisca Júlia era a produção superior que as mulheres escritoras produziram até então justamente por não apresentar nenhum vestígio do feminino nos seus poemas, muito menos em sua voz poética.

É claro que o poeta gaúcho associa o sujeito lírico a um ponto de vista masculino, enfatizando que a poetisa parnasiana imaginou a sua poesia como um homem o faria, ao criar as suas esfinges e estátuas, “submissa” às regras gerais da tradição clássica que utilizava o ideal das musas impassíveis, o qual Leal de Souza associa igualmente como motivo para poetas homens. Assim, contanto que uma escritora não se deixasse levar por seu ser feminino, ou seja, um ponto de vista a partir da mulher (questionamento do seu lugar na sociedade, seus sentimentos, seu corpo), ela poderia fazer parte do grupo seleto de mulheres que receberam a “benevolência” de serem aceitas pelos poetas homens, com ressalvas – nada de rebeldias.

Nada, nos másculos versos de FRANCISCA JÚLIA, denuncia a mulher. Diante de Vênus, é a de um homem a sua atitude. Dirigindo-se a um poeta ou falando a um artista, exalta-se o espírito ardente da escritora, porém a carne da mulher não pulsa. Na composição De volta da guerra, ela imagina ser um anoso veterano mutilado, mas em nenhuma alude à sua condição feminina (Souza, 1918: 78).

Por esse motivo, ao analisar a poesia de Gilka Machado e se defrontar com uma escrita identificada com o feminino, Leal de Souza tenta desqualificar a sua obra justamente com aquilo que a exalta: ela escreve a partir de suas experiências como mulher. Ele até identifica uma revolta social em sua poesia, mas, em seu conservadorismo, credita essa indignação aos “monótonos cenários prosaicos” e ao “amor convencional”, como se a denúncia em sua escrita do lugar restrito da mulher na sociedade se limitasse ao tédio de uma “vida feminina”. 

Gilka da Costa Machado, cantando com uma poderosa voz cheia de imprevistos acentos nunca dantes escutados, acende na delicada volúpia dos seus poemas, convulsivamente carinhosa, as enérgicas chamas das revoltas supremas: revoltas sociais da mulher ferida pela organização iníqua do mundo; revoltas estéticas da artista desgostosa dos monótonos cenários prosaicos; revoltas sentimentais do coração limitado a um círculo de amor convencional; revoltas audazes do espírito ébrio e sedento de liberdade! (Souza, 1918: 78).

Gilka Machado em seu livro de estreia parece responder literariamente a essa visão de um suposto modelo de escrita para as escritoras, as quais deveriam incorporar um neutro masculino para serem aceitas ou vistas como “sérias”. Em vez disso, no poema que abre Cristais partidos, a voz poética feminina gilkiana evoca a musa não para inspirá-la a escrever ou para contemplá-la, mas para produzirem juntas, cada uma compondo os seus versos, o trabalho poético: “No tórculo da forma o alvo cristal do Sonho,/ Ó Musa, vamos polir, em faina singular:/ os versos que compões, os versos que componho,/ virão estrofes de ouro após emoldurar” (Machado, 2017: 52) . Essa convocação fica expressa pelo verbo “vamos” enfatizando as duas influências estéticas que permeiam o livro: a parnasiana “no tórculo da forma” e a simbolista “o alvo cristal do Sonho”. O primeiro verso também denota esforço de escrita na palavra “tórculo” e de imaginação no vocábulo “Sonho”.

Na segunda estrofe do poema, a voz poética fala com a musa como se falasse a uma jovem escritora, ainda inexperiente e tímida, iniciando no ofício da escrita, aconselhando-a a abandonar o seu jeito acanhado, triste e submisso para que empregue a sua “perfeição”, ou a sua criatividade e inteligência, na “artística empresa” do fazer poético: “Para sempre abandona esse teu ar bisonho,/ esse teu taciturno, esse teu simples ar;/ a perfeição de que dispões e de que disponho,/ nesta artística empresa, é mister empregar” (Idem). Nesse sentido, parece falar com todas as mulheres que estão se lançando como escritoras, sendo o livro Cristais partidos também a primeira publicação de Gilka Machado e seu lançamento ruidoso no mundo das letras.

Na terceira estrofe, é apresentada a imagem do cristal como espelho (signo que está presente no título do livro e que reaparece posteriormente em outros poemas) que reflete duas imagens geralmente atribuídas à mulher – uma feição demoníaca e trágica e o símbolo da beleza infinita: “Seja espelho o cristal e, em seu todo, reflita/ a trágica feição que o mal consigo traz/ e o infinito esplendor da beleza infinita” (Machado, 2017: 52). Na quarta e última estrofe, a voz poética parece se dirigir à musa (ou às escritoras) avisando que ela se sentirá envaidecida quando “a rima soar”, ou seja com a sua obra pronta, e sentirá os efeitos no ser (na autoimagem) que palpita pela Arte (que produz arte) o som dos cristais se partindo em uma referência à estrofe anterior em que o cristal simbolizava espelho.

Assim, os cristais a que se refere o último verso são as imagens femininas da estrofe anterior, da mulher signo do mal e da mulher-objeto, reflexos dos cristais-espelhos da história, que se partirão com o soar da rima ou com a escrita das mulheres. De acordo com o final do poema, o choque dos cristais será sentido em todo o ser repentinamente envaidecido da musa (já que na segunda estrofe ela foi caracterizada com um ar bisonho, taciturno e simples) e será sonoro esse rumor dos cristais se partindo como a reverberação da recusa e da luta contra as imagens femininas aprisionadoras para as futuras gerações de mulheres – uma revolução empreendida pelas escritoras precursoras que ousaram escrever e colocar o que pensavam. E foi, de fato, sonora a repercussão do livro Cristais partidos na época de sua publicação fazendo sentir os seus ecos na produção de outras escritoras até os dias atuais, a respeito da “luta pelos direitos de acesso à inclusão do prazer erótico na poesia feminina brasileira” (Gotlib, 2016).

O ponto central da importância de Cristais partidos naquele contexto histórico-social, em meio a movimentos de defesa de maior representatividade social para as mulheres, é a apresentação de uma poesia na qual elas poderiam, finalmente, se mirar não como objeto de contemplação ou de especulação, mas como sujeito do discurso e de seu desejo sexual. Gilka apresenta um novo projeto estético, no qual questiona o lugar da mulher na sociedade e sua representação inferiorizada. Essa proposta se torna evidente no poema “Ânsia de Azul” (presente no mesmo livro) o qual, não por acaso, é dedicado a Francisca Júlia. No texto, a voz poética expõe a sua revolta com a posição rebaixada da mulher em uma sociedade que a aprisiona e a imobiliza. Segundo Gilbert e Gubar (2017), podemos entender esse endereçamento como forma de conexão a uma das poucas predecessoras, em uma busca por referências literárias maternas.

O início do poema apresenta um cenário primaveril de manhãs azuis de muita luz solar em que aves, entoando cantos de libertação, invadem o espaço aéreo e, metaforicamente, a mente do sujeito lírico, retomando a imagem da ave associada à imaginação poética. A vastidão da paisagem faz com que a voz poética deseje a infinita liberdade que vislumbra nos elementos da natureza. O sol tem lugar privilegiado nessa cena lúdica, derramando sobre todas as coisas uma luz radiante, multicor e sugestiva: “À vossa cor sublime, sugestiva, / onde há dedos de luz levemente a acenar, / por invencível sugestão cativa, / a alma das coisas sobe e flutua pelo ar” (Machado, 2017: 57). Em comparação à amplidão da paisagem natural, o sujeito lírico se depara com a sua condição pobre, pequena, dentro de uma sociedade que vigia e julga a todos, defendendo “bons costumes” de castidade e pureza quando, na verdade, é corrupta e hipócrita: “E que gozo sentir-me em plena liberdade, / longe do jugo atroz dos homens e da ronda/ da velha Sociedade/ - a messalina hedionda/ que, da vida no eterno carnaval, / se exibe fantasiada de vestal” (Idem). A voz poética prefere o autoexílio na natureza, caracterizada como “festa sacra de luz” enquanto a sociedade, em oposição, é tida como corrompida e depravada. Ao contemplar a vivacidade da natureza, o sujeito lírico medita sobre o seu próprio ser e flagra uma “alma tolhida” e um “corpo exausto e abjeto” de tanto ter de se acostumar a ser, na vida, um simples objeto:

Esta alma que carrego amarrada, tolhida,
Num corpo exausto e abjeto,
Há tanto acostumado a pertencer à vida
Como um traste qualquer, como um simples objeto,
Sem gozo, sem conforto,
E indiferente como um corpo morto;
Esta alma, acostumada a andar de rastros;
(Machado, 2017: 58)

Acontece, assim, um desejo do sujeito lírico em sair de si mesmo, em um movimento de transmutação em um animal selvagem. Interessante notar que a voz poética feminina identifica os seus gestos humanos como já animalizados (humanizada lesma), resultado da imobilização social de um gênero: “E analisando então os meus movimentos/ indecisos e lentos, / de humanizada lesma, / toma-me a sensação de fugir de mim mesma, / de meu ser tornar noutro, / e sair, a correr, qual desenfreado potro, / por estes campos/ escampos” (Machado, 2017: 58). Desse modo, essa subjetividade feminina, presente no poema, identifica a casa – que a disseram ser um lar – como uma terrível prisão (ergástulo), na qual tem as ideias agrilhoadas e aprisionado o corpo na inércia a que o submetem os preceitos sociais. Termina por maldizer a representação até então nula da mulher e se volta para o desejo por liberdade, de poder voar, como uma ave, acima das podridões terrenas, saciando-se de espaço e de luz.

Aves!
Quem me dera ter asas,
Para acima pairar das coisas rasas,
Das podridões terrenas,
E sair, como vós, ruflando no ar as penas,
E saciar-me de espaço, e saciar-me de luz,
Nestas manhãs tão suaves,
Nestas manhãs azuis, liricamente azuis!...
(Machado, 2017: 59)

A problemática em torno de uma escrita “máscula” como parâmetro para a autoria feminina se intensifica quando, em 1921, a Academia Brasileira de Letras decide propor um concurso literário para eleger o mais eminente escritor do período, em comemoração ao vigésimo quinto aniversário de sua fundação. Esse evento permeado por polêmicas intelectuais terminou por constatar dois fatos irrefutáveis: a grande produção literária de autoria feminina, principalmente em matéria de poesia, e o evidente sucesso dessas mulheres como escritoras, cujos livros estavam no topo dos mais vendidos na época. Infelizmente, outro fator ganharia relevo nesse concurso acadêmico da Casa de Machado de Assis e que se relacionou aos critérios utilizados pela banca julgadora para avaliar a obra que deveria ganhar o concurso. Segundo o que revela crônica do crítico João da Maia do Semanário Fon-Fon (RJ), publicada em 13 de agosto de 1921, os argumentos utilizados pelos imortais encarregados da escolha do melhor livro se pautariam pela linguagem refinada e pela forma parnasiana clássica: A Sra. Rosalina Coelho Lisboa Rademaker obteve o prêmio, porque (...) o seu livro é vazado em português castiço, em estilo acadêmico, (...) quando o Parnasianismo era ainda uma das mais belas expressões do sentimento poético...” (Maia, 1921).

Entretanto, o motivo mais contundente que teria levado ao primeiro lugar o Rito Pagão de Rosalina Coelho Lisboa não seria o caráter formal ou técnico de sua poesia, mas o conteúdo de seus versos, os quais apresentariam uma escrita “máscula”, de acordo com as palavras de João da Maia: “Como o impecável bardo dos Poémes Antiques, a Sra. D. Rosalina Coelho Lisboa Rademaker prefere os assuntos másculos, celebrando as batalhas homéricas, as legendas da Grécia, da Índia e da Idade Média” (MAIA, 1921, grifos nossos). Ao final da crônica de João da Maia temos a confirmação de sua opinião acerca da votação: que esta fora tendenciosa e injusta, uma vez que a Academia privilegiou a poesia de Rosalina, cujos versos, voltando-se para um passado remoto e saudoso, não apresentavam vestígios do feminino, em detrimento da obra de Gilka, a qual, em sua opinião, apresenta realmente uma proposta original em que a voz da mulher e suas ânsias poderiam ser ouvidas. Diplomático, João da Maia afirma que a decisão da Academia deve ser respeitada, apontando, porém, que o que definiu a decisão dos jurados foi mesmo a questão da poesia máscula, ou como grifamos no texto: “Dizem que o estilo é... a mulher”: “A Academia coroou a Sra. D. Rosalina Coelho Lisboa Rademaker. Nós já o sabíamos. Toda a gente o sabia. Os ruídos da pugna Academia ecoaram cá fora... Dizem que o estilo é... a mulher. A Academia premiou assim as altas virtudes de um temperamento olímpico e geométrico” (Maia, 1921, grifo nosso).

Conclusão

     O trabalho poético empreendido por Gilka Machado se configurou como uma espécie de mola propulsora para uma conscientização da produção artística de autoria feminina que, mais tarde, seria talvez o fenômeno mais significativo da literatura brasileira na segunda metade do século XX. Assim nos confirma Nelly Novaes Coelho (1993), em relação à transgressão do cânone patriarcal, ressaltando ser inegável que a literatura produzida por mulheres na Belle Époque brasileira foi um dos grandes instrumentos conscientizadores do século XX no Brasil. Desde as vozes femininas pioneiras, que na poesia do início do século se assumiram como transgressoras, até os dias atuais, a autoria feminina vem dando voz a uma nova consciência para as mulheres, não só em relação a si mesma, mas também em sua tarefa na construção da História, servindo como referência poética a várias escritoras posteriores, notadamente a partir dos anos 70 e 80, como Adélia Prado, Ana Cristina César, Astrid Cabral, Helena Parente Cunha, Heloneida Studart, Hilda Hilst, Lya Luft, Márcia Denser, Marly de Oliveira, Myriam Fraga, Nélida Piñon, Patrícia Bins e Sônia Coutinho, dentre tantas outras.

A obra de Gilka Machado se situa numa perspectiva decisiva na contestação aos padrões impostos pela crítica da época, numa provocação às bases de uma literatura conservadora, pois ousou escrever a partir de um ponto de vista feminino, numa época em que a convenção poética parnasiana pregava que as escritoras deveriam escrever “como se fossem homens”. Desse modo, o objetivo deste artigo foi recuperar a importância da participação intelectual da autora no início do século XX, contribuindo para um novo olhar sobre a sua poesia e sobre a literatura de autoria feminina do período, a qual teve que superar inúmeros desafios para a sua legitimação, perante uma crítica parcial e sexista. Injustamente relegada ao ostracismo pelo cânone, o seu projeto poético se pautou na realização de uma escrita marcada pelo feminino e pela subversão dos modelos literários, superando paradigmas limitantes, como a questão da musa na poesia produzida por mulheres.

Notas de fim

[1]As crônicas de primeira fonte utilizadas no presente texto foram obtidas através da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, cuja transcrição foi adequada à atual ortografia do português, segundo os parâmetros do vigente Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), permanecendo, entretanto, certas marcas de estilo como a elisão da vogal em “d’ovo”, por exemplo, bem como a presença de neologismos.

[2] Livro publicado originalmente pela Ariel Editora Ltda., em 1932.

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Pour citer cet article
Suzanne Silveira, « A poesia de Gilka Machado e a crítica literária da Belle Époque brasileira », RITA [en ligne], n°14 : septembre 2021, mis en ligne le 23 septembre 2021. Disponible en ligne: http://www.revue-rita.com/articlesvaria14/a-poesia-de-gilka-machado-e-a-critica-literaria-da-belle-epoque-brasileira-suzanne-silveira.html