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    Périphéries culturelles dans les Amériques
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A cidade como obra de arte: re(leituras) e des(escritas)

La ville comme œuvre d´art: re(lectures) et dés(écritures)

 

Resumo
O texto analisa a ação de poetas do projeto Tagarela, realizado no âmbito de ruas e bairros da cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Na mesma, os participantes se utilizam de megafones para recitarem seus textos a fim de aproximar a poesia falada da população. Tem-se como objetivo refletir acerca da contribuição desses fenômenos e interrogar os efeitos destas práticas na participação social assim como o protagonismo de atores sociais em espaços periféricos. Parte-se da hipótese que essas práticas, ao serem identificadas, reconhecidas e fomentadas, permitem outros enunciados na produção de uma Literatura contemporânea. Dessas interações, revela-se o nascimento de heterotopias bem como a valorização da cidade como suporte técnico-criativo e plataforma à diversidade de narrativas. Por meio de estratégias inovadoras, os interlocutores ampliam as possibilidades de se fazer política, exaltando a rua como parte de uma experiência estética e lócus emancipatório.

Palavras-chaves: Tagarela; Heterotopia; Cidade; Arte; Literatura.


Résumé
Le texte analyse l'action des poètes du projet Tagarela, qui se déroule dans le contexte des rues et des quartiers de la ville de Rio de Janeiro, au Brésil. Les participants utilisent des mégaphones pour réciter leurs textes afin de rapprocher la poésie parlée de la population. L'objectif est de réfléchir à l'apport de ces phénomènes et aux effets de ces pratiques sur la participation sociale et le rôle des acteurs sociaux dans les espaces périphériques. Cela part de l'hypothèse que, lorsqu’elles sont identifiées, reconnus et mises en place, ces prariques permettent d'autres formes d’énonciation dans la production de la littérature contemporaine. De ces interactions, ce qui émerge est la formation d’hétérotopies, ainsi que la valorisation de la ville comme support technico-créatif et plateforme d’une grande diversité de récits. À travers des stratégies innovantes, les interlocuteurs élargissent les possibilités de faire de la politique, s’appropriant la rue comme l’espace d'une expérience esthétique et d'un lieu émancipateur.

Mots-clefs : Tagarela; Hétérotopie; Ville; Art; Littérature.

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Paulo Emílio Machado de Azevedo

Doutor em Ciências Sociais
Fundador e diretor da Cia Gente

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Reçu le 11 octobre 2020/Accepté le 12 juillet 2021

A cidade como obra de arte: re(leituras) e des(escritas)

Introdução

     Situada uma descrença generalizada no que se refere à política tradicional, o texto revela outra possibilidade de agenciamento e protagonismo no uso da cidade e as distintas possibilidades de recriação e ressignificação dos espaços urbanos e públicos à emergência de vozes. Potencializando redes de sociabilidades e outros espaços de emancipação, funda-se o projeto “Tagarela” no dia 25 de setembro de 2013, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil.

A ação se desenvolve por meio de encontros e desafios (slams) entre poetas e performers, ou também toda e qualquer pessoa que se identifica com a proposta. Tais encontros se iniciaram no Largo de São Francisco de Paula, no Centro do Rio de Janeiro, e depois passaram a percorrer toda a cidade, bem como outras cidades e países. Sua forma de ocupação foi influenciada pelos vestígios da palavra, assim como nas manifestações de junho de 2013 que tomaram as ruas do país.

Nesse sentido, de antemão, é importante frisar que o fato da palavra ter recebido enorme força nas ruas não fez o Tagarela diminuir o tempo de fala para cada participante. Ressalta-se este aspecto, pois a regra oficial de uma competição de poetry slam é que se recite cada texto em até três minutos. Também, ressalta-se que o Tagarela não se restringe à própria ideia de competição, mas sim de uma experimentação estética onde a palavra recebe tratamento de alto valor. No Tagarela, a ideia é que a pessoa possa falar o tempo necessário para expressar sua mensagem, afinal esse era o contexto das manifestações – e por isso o nome “tagarela”; o “falador”. Ainda tomando como referência as manifestações de junho, o Tagarela se apropriou de outro dispositivo bastante comum nas mesmas: o megafone. Este, por sua vez, ampliou técnicas de uso da palavra e do corpo na urbe.

Entende-se, pois, que o ano de 2013 precedia a Copa do Mundo e já vigorava em tal contexto a chamada “Lei da Copa”. Dentre tantas atribuições em vigor, a lei dificultava consideravelmente a aprovação de projetos e ações realizadas diretamente nas ruas e praças. Como propósito, alegava-se que tais eventos pudessem estar associados à participação de black blocks – os mascarados considerados como sujeitos perigosos e desviantes da finalidade das manifestações.

Foi nesse decorrer que, em meio a centenas de manifestantes, observou-se um megafone empunhado por determinado manifestante. De fato, ele sempre esteve lá. Faltava apenas olhar mais uma vez e enxergar sua relevância.

I. Configuração de território

          A partir desse instante, o uso do megafone passou a atender a duas demandas. A primeira foi de ordem logística. As ações seguiram sendo realizadas nos espaços públicos sem ter que passar pela excessiva burocracia dos órgãos de fiscalização do Estado. Havia a vantagem de não precisar de energia elétrica para ligar microfones e equipamentos de som, uma vez que no megafone se usam pilhas. A segunda demanda era relacionada ao aspecto da comunicabilidade, isto é, a afirmação de que a palavra na rua recebia significante adesão. Tal caraterística nos faz lembrar dos Steatsonics que, tratando-se da identificação do rap nos EUA, diziam o seguinte: “o rap pegou porque falar é barato”.

Faltava, ainda, um elemento que pudesse servir de palco; algo que demarcasse o lugar do encontro e o conferisse maior visibilidade. Mas o problema é que isso, em princípio, também levaria às solicitações e a mais burocracias. A questão passou a ser: como desobedecê-las, sem se tornar ilegal? Refletidas algumas possibilidades, junto ao megafone se acrescentou a ideia de utilizar dois caixotes de feira. Em geral, os mesmos são usados para transportar legumes e frutas – num deles, grafitou-se a palavra Tagarela e no outro, a expressão a poesia na boca do povo. Nascia assim o maior slam do mundo. Maior, justamente, por não haver um tempo limite para execução da performance. Foi desse modo que tudo começou: reunindo pessoas e mais pessoas nos encontros pela cidade. (Para além dessa organização logística, os encontros, que acontecem uma vez por mês, começaram reunindo cerca de vinte a trinta participantes e um público flutuante que se aglomerava. Em seu primeiro ano ocorria entre os horários de almoço e, a partir do segundo, ao final do expediente de serviço.)

foto Franois de Patrcia Blasn

Figura 1: MC Slow anuncia o Tagarela. Rio de Janeiro (Blasón, 2013)

II. Da proposição estética à ocupação

          É importante que se ratifique que o Tagarela não é um concurso literário propriamente dito, logo não há nenhum júri com o texto em mãos. Trata-se de uma performance poética, com uso expressivo da oralidade, na qual é possível pouco a pouco visualizar elementos que fomentam a emergência de outra forma de Literatura. É também nessa composição de novos repertórios, que, por exemplo, o júri sofre mudanças e passa a ser constituído por voluntários em cada local. No caso do Largo de São Francisco de Paula, salienta-se que muitas vezes o júri foi composto por pessoas em situação de rua. Mas que, ao integrá-lo, tornava-se um jurado.

Da performance, derivam dois aspectos que se complementam na expressão dos sentidos: se por um lado a performance amplia a voz, por outro modula a escuta. Nesse sentido, as relações entre transmissão, recepção e frequência passaram a se dar noutra percepção do fluxo poético – o uso do megafone propiciava a cada vez uma experiência estética. Observou-se uma palavra em movimento, palavra perlocucionária, palavra projétil (Azevedo, 2013); aquela capaz de tombar.

            A. Heterotopias na sequência do percurso

          O Tagarela foi se movendo e movendo pessoas, abrigando ideias e ocupando outros espaços de expressão: tornou-se livro (Azevedo, 2014)[1], flash mob, exposição, oficina para crianças e capacitação de professores. Foi também tema de pesquisas acadêmicas e, por fim, tornou-se filme (Itagiba, Mattoso, 2015). Com este, recebeu três prêmios de melhor documentário em festivais internacionais, com destaque para a sua participação no People´s em Nova Iorque. É importante considerar que o filme teve custo inferior a cem reais de produção.

Desse modo, tomando como referência o conceito de heterotopia em Foucault (2001), propõe-se releituras e des-escritas na cidade, a partir de um projeto de ressignificação no uso do espaço público. Proposta esta que se apresenta através de outras arquiteturas de corpos e não apenas aqueles considerados padrões, geometria de vozes, histórias de ritmos e cartografia da palavra poética. São espaços para refletir sobre o consumo, questionando tais poderes na formulação de outros debates sobre o reconhecimento e fomento a distintos protagonismos na contemporaneidade. A voz enquanto lugar de potência ou elemento indispensável à produção de narrativas e memórias de comunidades periféricas.

            B. Novas gramáticas políticas nas esquinas

O Tagarela, a partir de seus feitos, vem, como nos ensina Mafessoli (1981), transformando parte de uma violência totalitária, banalizada, numa violência fundadora, criativa. Dessa abordagem se vislumbram possibilidades de subversão aos sistemas dominantes, na busca por reconfigurações no redesign urbano e na valorização da diversidade humana. Também do acesso aos bens culturais e simbólicos presentes na cidade – por que não dizer, a construção de outra cidade?

Todos esses são aspectos motivadores para a ação dos tagarelas. Todavia, para atingir a dissolução de algumas dessas fronteiras foi necessário reconhecer potenciais de elaboração e reelaboração no plano da representação de territórios urbanos. Ainda assim, identificar possibilidades alternativas de criação nesse espaço às estratégias de ocupação da cidade, numa expressão de Basilio (2014): “a rua como currículo”. Através do Tagarela, o espaço público aparece mais uma vez como arena de conflitos, espelho da criação e lócus emancipatório. A ação de seus interlocutores promove uma resistência à penalização do uso desse espaço.

Hardt e Negri (2005), a partir do conceito de “biopoder” estabelecido por Michel Foucault, tratam a questão a partir de um novo paradigma. Nesta interpretação, a sociedade de controle rompe com a sociedade disciplinar, cuja força agora se apresenta de modo mais evidente no corpo coletivo. A vida social passa a ser regulada por dentro, ativada constantemente pelo próprio desejo dos indivíduos. Estaríamos diante da constituição de uma grande comunidade emocional, em oposição ao modelo de organização racional típico da sociedade moderna. O paradigma disciplinar vai sendo gradativamente substituído, dando vez a outra hegemonia que vem deslocar a centralidade do Estado. Configura-se um novo arranjo de poder, no qual os movimentos sociais ganham expressão como novos atores políticos.

Compreende-se que o que está por detrás dessa proxemia (Maffesoli, 2002), com adesão instantânea, ou seja, dentro e fora do corpo social, estrutura-se a partir de um dispositivo de comunicabilidade bem diferenciado. Campo específico do saber que, por sua vez, articula-se com um código imagético capaz de compor outra sensorialidade e reciprocidade entre os corpos. Corpos que gritam invisibilidades e as tatuam no cimento da cidade. Expressam-se as rupturas e de base à construção de outros espaços de cidadania e vozes.

Na forma de fazer política que passam a adotar, constroem outras narrativas, lugares de fala e territórios. Preocupam-se também com a semiótica, a polissemia do gesto e as sensações. O corpo, em distintas abordagens (biológica, somática, física), transforma-se num instrumento de poder e cerne da reforma das estruturas sociais. Sendo, no entanto, menos uma política de identidade de classe e cultura que de diferença (Hall, 2004). É neste contexto que aparecem como protagonistas essas novas gramáticas políticas (Azevedo, 2006).

          C. A cidade e sua ocupação

Em Debord (1997: 14), aprendemos que “o espetáculo não é apenas um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens”. É desse modo que o Tagarela transita no espaço de mediação: seu corpo e sua voz são substantivos que se justapõem na construção de uma narrativa, de narrativas. Adiante, essa mesma justaposição se interpõe na qualidade de verbo de ligação, ou como em uma das belas intuições de Nietzsche (2011), o homem não é mais artista, tornou-se obra de arte, a potência artística da natureza inteira. De diferentes formas, a cidade se torna extensão do corpo e se abre à ocupação por meio de estratégias criativas e inovadoras. Esse trânsito de saberes nos faz refletir que somos também uma parte ativa e inacabada da cidade: ela, assim como o ser humano, nunca estará pronta.

A cidade em percurso, em construção. Eis que ressignificada, sonhada e reinventada, pode ser tecida como obra de arte. Neste ínterim, corpo e palavra são como sublinhadas no texto como potentes gramáticas políticas. Mas é importante lembrar que o Tagarela não se autodenomina uma “intervenção”, como tantas das vezes são consideradas as ações que se desenvolvem diretamente no espaço urbano e público. Os interlocutores dessa experiência não são nem da Polícia, nem do Direito nem da Medicina Psiquiátrica ou agentes do Estado.

O que nessa ação deve ser reforçado é que seus atores sociais estão em busca de outros arquétipos de espaços-tempo. Sem essa utopia, a arte lhes parece inócua e esvaziada. Na memória da cidade, estão assim atentos à emancipação de outros sentidos e semânticas das configurações dispostas – um vetor desobediente do uso das arquiteturas a contrariar os fluxos de uma economia adoecida e limitada do olhar. Esse é o tema que paira sobre a égide dos tagarelas: o direto de humanização das vias públicas; afirmar a ocupação da cidade é interrogá-la como dimensões do social, político e estético.

Uma nova questão daí emerge: se a rua é o maior espaço da diversidade que existe, por que não a humanizar, ao invés de demoniza-la e justificar o fortalecimento do estado penal? Esses novos, nem tão novos assim, dispositivos de controle da vida são máquinas de gastar gente: armadilhas para continuar protegendo a propriedade; a vida dos corpos que pesam mais em detrimento daqueles que pesam menos (Butler, 2010). É preciso: rever o dilema do abandono desses espaços e sua ocupação, refutar a banalização da violência, descolonizar estigmas dos atores sociais envolvidos e questionar o discurso de acessibilidade seletiva dos espaços urbanos. São por esses motivadores que o Tagarela rega o asfalto de poesia e planta afetos na forma de versos. Essencialmente um ato político, de resistência.

III. Pausa

          Consideremos até aqui quatro pontos de análise:

1º) A dimensão expressivo-simbólica da participação: a utilização de outras formas de ação e interferência direta na condição de sociedade civil organizada se dá como mais um mecanismo de pressão à agenda pública. Sinonimizam-se como urgência, uma vez que é parte da garantia dos direitos básicos do cidadão; prioridade que deve ser encarada como dever do poder público em assegurar os mesmos e tais serviços. Observa-se em Teixeira que:

Esse elemento simbólico [...] exprime aí sentimentos, identidades e até demandas específicas dos diversos atores, e seria superficial lê-lo como mera encenação e teatralidade, com objetivo instrumental e estratégico, como na visão da chamada “política simbólica” – muitas situações, objeto da ação expressiva, já são, por si, dramáticas (exclusão, opressão, discriminação). Trata-se também de ações que [...] poderiam ser consideradas como “identificantes”, no sentido de visarem produzir símbolos que servem aos membros de uma coletividade para se reconhecerem como tais, comunicarem sua solidariedade (Teixeira, 2001: 41).

2º) A necessidade do dissenso: tomando como referencial a categoria partilha, ocorrem possibilidades manifestadas de um contexto híbrido entre estética e política. A palavra nas suas disposições do teatro da representação e da escrita nos termos evidenciados por Platão (Rancière, 2005) – embora nesta experiência mais especificamente da palavra performatizada – remetem a outros dispositivos de biopoder. Pode-se dizer que as práticas artísticas são maneiras de fazer a fim de interagir na distribuição geral das outras maneiras de fazer. Apresentam-se como forma de produzir inúmeras formas de existir e de ser visível. Atuam como elemento do dissenso ou artéria narrativa a embaralhar a partilha das identidades, atividades e espaços em comum. Aqui também aparece a ideia de recriação da vida.

3º) A perspectiva do cultivo social: o cunho ecológico dessa experiência deve ser pensado numa dimensão ampla do termo, retomando a ideia de processos comunitários mediante o aprendizado de práticas e estratégias para garantir os recursos de desenvolvimento sustentável. Portanto, o cruzamento de instâncias e sistemas (ou ecossistemas sociais) que se cruzam para uma compreensão mais apurada do fenômeno: tempo, espaço, tipos de atividade. Deslocamentos dos fazeres e agires locais enquanto arte de ocupação da cena pública à participação social (Vizer, 1983). Percebeu-se a partir de experiências pares o tanto de vozes que podem surgir nessas práticas. São saberes múltiplos, formas de conhecimento oriundas do cruzamento das histórias de vida dos participantes (a narrativa, a unidade, o ritmo) e o dizer de cada realidade circunscrita (a poética e seu sopro, o conjunto e seu corpo, o cimento de sociabilidade e sua correspondente solidariedade). De fato, possibilidades que por sua vez incidem sobre mais uma disposição da biopolítica; potências, tantas das vezes banalizadas, que a cultura popular nos ensina a cuidar e semear.

4º) A geopóética do território: a cidade se se faz lugar de morada; também palco para espelhar as expressões dos atores sociais na cena, como é o caso do Tagarela. É da epígrafe de Lefebvre, apresentada logo abaixo, que se pode enxergar melhor o quanto o lugar e o espaço criam possibilidades de (re) conversação na composição da obra de arte:

A cidade sempre teve relações com a sociedade no seu conjunto, com sua composição e seu funcionamento, com seus elementos constituintes (campo e agricultura, poder ofensivo e defensivo, poderes políticos, Estado etc), com sua história. Portanto, ela muda quando muda a sociedade no seu conjunto. Entretanto, as transformações da cidade não são os resultados passivos da globalidade social, de suas modificações. A cidade depende também e não menos essencialmente das relações de imediatice, das relações diretas entre as pessoas e grupos que compõem a sociedade (família, corpos organizados, profissões e corporações etc); ela não se reduz mais à organização dessas relações imediatas e diretas, nem suas metamorfoses se reduzem às mudanças nessas relações [...] Desta forma, a cidade é obra a ser associada mais como obra de arte do que com o simples produto material. [...] A cidade tem uma história; ela é a obra de uma história, isto é, de pessoas e de grupos bem determinados que realizam essa obra nas condições históricas” (Lefebvre, 2001: 51-52).

A perspectiva de abordagem desses quatro fatores revela a importância de haver uma sociedade civil organizada. Isto é, a ressignificação da cidade, os espaços físicos e simbólicos ocupados na expressão de cada território, cada núcleo. O debate em torno da esfera pública é a principal agenda no potencial de arte e visibilidade das comunidades envolvidas nessa circunferência.

Conclusão

     A cidade é um mosaico, quebra-cabeças que não traz uma quantidade de peças exatas a completar a equação. Seu emaranhado não tem fim. Portanto, cabe percorrê-la e redescobri-la. É preciso reaprender a andar sem tanta pressa, afinal caminhar é um ato político, sobretudo, se não se submete a qualquer utilidade senão caminhar. No mais, a experiência precisa de tempo (Benjamin, 1994).

Pois, a experiência observada e vivida neste estudo nos mostra que há uma legitimidade em se exercer a política como ato fundador da existência humana. No entanto, não apenas uma forma de exercê-la, mas diversas. Tal proposição, a partir do Tagarela, pode ser comprovada por múltiplos olhares. Desde a percepção de Aristóteles, na qual uma cidade é construída por diferentes tipos de homens (e que pessoas iguais não podem fazê-la existir) até uma retomada da sensorialidade em “Carne e Pedra” (Sennett, 2006). Não diferentemente, tangencia a ideia da cidade como currículo em Basílio, onde a rua é tida como uma aula, uma lousa, um lugar onde se escreve. Essencialmente, na voz do Tagarela, onde se (des)escreve.

Compreendendo o espaço público como campo privilegiado de conflitos, pensamos que adotar práticas que reivindiquem a vida e o uso do direito de se expressar são possibilidades de agir no trânsito da liberdade e do desejo contínuo de transformação. Um dos modos que melhor apreende estas ações é aquele inscrito na categoria “mundo de artes” (Becker, 1977).

Compreende-se que esses atores sociais produzem uma lógica interna de gestão que choca com os pressupostos da modernidade. Reconectam o que este paradigma deixou de fora com a égide da racionalidade – a emoção, a mística do mistério, o simbólico e a sensibilidade –, embora esteja ora o arcaico amplificado pelas facilidades da tecnologia. O que está por trás desse movimento é a lógica da paixão, prevalecendo a sensação. A comunidade emocional pós-moderna está ativa e o movimento está no verbo representado pelo corpo – via de catarse e expressão onde o sujeito expressa a descrença na política tradicional. O biopoder, vale sublinhar, está encarnado na religião, não no sentido partidário, mas na profunda experiência original da mesma – o religar-se (Maffesoli, 2002).

Nascem assim formas de fazer política pelo conjunto das novas inscrições que tocam o contemporâneo e seus interlocutores, pois a ação realizada com os mesmos (pelos mesmos e através dos mesmos) se constrói a parte de uma representação totalitária da violência (Maffesoli, 1981). Ao contrário, contribui na elaboração de mais uma violência fundadora, criativa, onde nela é possível transformar o possível desastre em arte.

Pode-se com isso dizer que outro texto está na cidade, com outras narrativas. Este, ao invés de gerar uma fôrma, requer e valoriza formas, geometrias das mais diversas. Caminhando um pouco mais, o andarilho nos conta que há um perímetro não perfeitamente calculável, porém bem compreendido, entre o presente e o futuro. Neste vazio, precioso abismo, encontram-se espaços para se reinventar a vida, descolonizar morais, e desinstitucionalizar padrões. Também, des-escritas, a citar como o poeta português José Regio, “não vou por aí”. Assim seguem a caminhar os tagarelas, na contramão.

Notas de fim

[1] O livro pode ser encontrado à venda no site da Editora Multifoco.

Bibliografia

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Para citar este artigo
Paulo Emílio Machado de Azevedo, « A cidade como obra de arte: re(leituras) e des(escritas) », RITA [en ligne], n°14 : septembre 2021, mis en ligne le 23 septembre 2021. Disponible en ligne: http://www.revue-rita.com/expressions-libres/a-cidade-como-obra-de-arte-re-leituras-e-des-escritas.html