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A la guerra Americanas: questões de gênero e etnicidade nos retratos de Maria Quitéria de Jesus
Aux guerres américaines: questions de genre et d'identité raciale dans les portraits de Maria Quitéria de Jesus

 

Resumo
O artigo tem como objetos de análise os retratos de Maria Quitéria de Jesus, mulher que combateu tropas portuguesas na Guerra de Independência do Brasil. As obras foram produzidas por Augustus Earle em 1824 e por Domenico Failutti em 1920. Discutiremos os modos pelos quais essas imagens suscitam problemas de gênero e etnicidade na construção visual da nação brasileira.

Palavras-chave: Retratos; Formação nacional; Gênero; Etnicidade.

Résumé
Cet article a pour sujet les portraits de Maria Quitéria de Jesus, une femme qui a combattu les troupes portugaises dans la guerre d’indépendance du Brésil. Les œuvres datent de 1824 et 1920 et sont respectivement d’Augustus Earle et de Domenico Failutti. Nous chercherons à observer la manière dont ces images introduisent des problématiques de genre et d’ethnicité dans la construction des images de la nation brésilienne.

Mots-clé : Portraits ; Formation nationale ; Genre ; Identité raciale.


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Nathan Gomes

Mestrando em culturas e identidades brasileiras
Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo (USP)

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A la guerra Americanas: questões de gênero e etnicidade nos retratos de Maria Quitéria de Jesus

A la guerra Americanas

Vamos con espadas crueles [1]

Salve os caboclos de julho

Quem foi de aço nos anos de chumbo

Brasil, chegou a vez

De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês [2]

 

Introdução[3]

As disputas políticas em torno das independências das nações latino-americanas articularam uma economia visual baseada em pinturas, monumentos, emblemas, bandeiras e moedas que pudessem narrar os relatos fundacionais das nações americanas. Isso é o que Dawn Ades denominou de “imagística da Independência” (Ades, 1997: 7). Nesse caldo visual, a retratística se revela como um dos campos privilegiados para compreender as disputas pelo poder de narrar e de sedimentar os relatos nacionais. Eram os retratos que permitiam que os cidadãos evocassem os rostos dos seus heróis nacionais, num tipo de culto cívico em que “os santos foram substituídos pelos heróis e os mártires da fé pelos mártires da pátria”[4] (Vejo, 2001: 98). Assim como a pintura de história, cujo principal mecenas era o próprio Estado, os retratos dos heróis nacionais projetavam “as aspirações e ideais dos grupos sociais que controlam o aparato estatal, as aspirações e ideais do Estado moderno.” (Vejo, 2001: 104).

As imagens de mulheres e homens que se destacaram nas pelejas por emancipação política atuavam no sentido de encarnar os diferentes relatos nacionais em disputa. Assim, não era raro que, à ascensão de certa facção política, algumas figuras outrora em ostracismo emergissem como heróis nacionais (Ades, 1997: 21). Ou ainda que as representações se transmutassem a fim de corresponder aos diferentes projetos políticos concorrentes.

Tomemos como exemplos dois dos retratos de Dona Leopoldina, ambos produzidos nos anos 1920, que divergem acerca do papel político da imperatriz. Domenico Failutti a representou a partir de suas funções reprodutivas, isto é, como mãe dos herdeiros da coroa. Ladeada por seus cinco filhos (dos quais, as quatro meninas carregam consigo algo no colo, indicando seus incontornáveis destinos maternais). Por outro lado, o quadro de Georgina de Albuquerque destaca o protagonismo da arquiduquesa na Sessão do Conselho de Estado que antecedeu o chamado “Grito do Ipiranga”, proclamado por Dom Pedro em 7 de setembro de 1822. Fora do ambiente doméstico, a imperatriz discute com José Bonifácio e outros homens a situação política frente às pressões das Cortes de Lisboa. Esse quadro de Albuquerque é considerado a primeira pintura histórica realizada por uma mulher no Brasil (Simioni, 2002). É interessante notas como as efemérides do centenário da Independência articularam distintas (em certa medida, contraditórias) abordagens do relevo da imperatriz no processo que levou à emancipação política brasileira.

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Imagem 1: Dona Leopoldina e seus filhos. Domenico Failutti. Óleo sobre tela, 1921. 155 x 253,5 cm. Museu Paulista da Universidade de São Paulo, São Paulo.

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Imagem 2: Sessão do Conselho de Estado. Georgina de Albuquerque. Óleo sobre tela, 1922. 210 cm x 265 cm. Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.

Será, portanto, no âmbito da história da arte que encontraremos as ferramentas metodológicas para, a partir da análise das obras, discutir a função dos retratos na construção dos relatos fundacionais das nações latino-americanas. Ainda que não possamos prescindir dos aspectos biográficos a respeito dos indivíduos retratados, interessa-nos investigar principalmente os variados modos de representação artística em disputa e sua relação com as dinâmicas sociais inerentes às sociedades americanas do século 19 e início do século 20. As diferenças substanciais entre as obras aqui abordadas, ao invés de embaçar nossas lentes de análise, permitem configurar uma leitura poliédrica, em que se evidenciam as contradições e os embates.

Ao longo deste artigo, analisaremos aspectos iconográficos da retratística nacional brasileira a partir dos estudos de gênero e de problemas de etnicidade e representação. De modo mais específico, serão nossos objetos de análise os retratos da combatente Maria Quitéria de Jesus, produzidos em 1823 por Augustus Earle e em 1920 por Domenico Failutti. As representações de Maria Quitéria, uma personagem destacada sobretudo na Bahia, onde viveu e se engajou politicamente, revelam um aspecto da iconografia brasileira bastante relevante em face da emergência da categoria gênero na historiografia da arte[5]. Por outro lado, o retrato de Quitéria permite também abordar uma discussão premente nas primeiras décadas do século 20, qual seja, a ideia de que a formação da sociedade brasileira se estrutura a partir de seu aspecto multirracial, “mestiço”. Veremos como a intenção de representar o aspecto popular da Independência no panteão de heróis nacionais encontrou amparo na “indianização” da combatente baiana.

I. Rostos à nação

A retratística, historicamente reservada aos membros do poder hegemônico, tem papel fundamental na disputa discursiva pela emancipação e construção nacionais. Como escreve Natalia Majluf, ainda que bandeiras, moedas e selos permitissem “a materialização tangível e efetiva de noções abstratas como a soberania e a autoridade estatal”, uma parte significativa da economia visual do período pós-Independência era composta de símbolos menos desencarnados. Era necessário dar rosto às nações recém-fundadas, isto é, corporificar certas ideias e projetos de nacionalidade. Nesse sentido, o retrato emergiu como um “elemento decisivo, talvez o mais complexo e ambíguo” na formação visual dos Estados latino-americanos (Majluf, 2013: 92-93).

No caso republicano, a efígie do rei precisava ser derrubada e, em seu lugar, serem entronados conceitos políticos modernos e despersonificados (soberania, autoridade estatal, Constituição). O caso brasileiro é interessante pelo fato de ter se formado um império sob os trópicos e, nesse sentido, a figura do rei não poderia ser derrubada. Pelo contrário. De fato, em termos simbólicos, Dom Pedro e o Brasil formavam uma espécie de torvelinho, em que “[u]m se faz gêmeo e análogo do outro”. É justamente “essa elaboração sígnica e simbólica do imperador [que] vai dando uma conotação do que é o Brasil” (Souza, 1999: 17-18). Ainda assim, é possível perceber o esforço empreendido para forjar uma iconografia de Dom Pedro que agregasse elementos da tradição visual europeia, própria dos retratos da realeza, àqueles associados à monarquia americana e constitucional.

A individualização dos relatos nacionais na forma de retrato, a sintetização de processos políticos em alguns rostos icônicos remonta ao próprio desenvolvimento da retratística na arte europeia. É como se verdadeiro espírito nacional pudesse se revelar nos aspectos faciais de alguns notórios cidadãos americanos. Daí encontrarmos, na documentação relativa às encomendas, debates sobre “a verdadeira efígie” dos heróis (Costa, 2009) (Costa, 2013).

Em termos amplos, os retratos que compõe a imagística da Independência foram produzidos a partir de matrizes visuais oriundas dos mais recônditos imaginários americanos: retratos reais, miniaturas, ex-votos, imagens marianas e de santos católicos, arte de viajantes, alegorias de todo tipo e cenas costrumbristas. “Esta obras envolvem tanto uma continuação quanto uma rejeição das tradições estabelecidas durante a época colonial” (Ades, 1997: 9). É possível perceber, por exemplo, certas reelaborações a partir da tradição popular, como as extensas legendas características dos ex-votos.

Ao longo do tempo, os retratos dos próceres da Independência foram adquirindo “um aspecto de imagem votiva, agora a serviço de um idealismo secular” (Ades, 1997: 12). Os museus nacionais, que surgiam pari passu à consolidação dos Estados, eram concebidos como “santuários laicos da nação” e suas coleções (compostas não apenas por retratos, mas também por objetos pessoais e documentos que pudessem “encarnar” os heróis) como relíquias veneráveis que poderiam mobilizar os mais altos sentimentos patrióticos (Costa, 2010: 73-74). Em verdade, mesmo as figurações não escaparam de todo da herança da arte cristã, dominante em todo o período colonial - e em franca decadência a partir do século 19 (Ades, 1997: 10-12) (Vejo, 2001: 93-98). O caráter votivo das imagens guardava ainda algo dos cultos marianos e, especialmente, das representações de martírio cristão (Berbara, 2015).

Como objetos de devoção cívica, os retratos participavam também de festividades e desfiles militares, emulando muitas vezes a presença física do líder. Iara Lis de Souza narra como os retratos de Dom Pedro tinham papel fundamental nas cerimônias de aclamação que, incentivadas pelo Império, ocorriam em todo o território nacional. A Vila de São Francisco de Sergipe do Conde, na então província da Bahia e não muito distante de onde Maria Quitéria nasceu, foi avisada da chegada do retrato do imperador “com estrondos de instrumentos bélicos e girândolas” (Souza, 1999: 260). O tenente-capitão Vasco de Brito e Souza, que abrigou o retrato em sua casa, registrou que a rua da Matriz

nunca se viu tão habitada de pessoas de um e outro sexo, e debaixo de tão brilhante ajuntamento, e festejo, se conduziu o Fiel Retrato do Nosso Augusto Imperador para a Casa do mesmo Tenente, onde encerrado, e com a devida Reverência, foi colocado em uma sala já disposta e armada com a decência possível para semelhante fim (Souza, 1999: 261).

Além dos retratos em óleo sobre tela em grandes formatos, há um segmento significativo dos retratos de heróis nacionais em miniaturas, litografias e daguerreótipos. As primeiras, bastante populares até a irrupção da fotografia, tornaram-se o modo favorito de representação tão logo vieram à tona na América Latina do final do século 18. Isso decorreu, essencialmente, em função de sua portabilidade e do baixo custo. Uma tendência que começou a declinar a partir da popularização do daguerreótipo na segunda metade do século 19 (Bretos, 2004: 153-158). Por sua vez, os retratos litografados, sobretudo aqueles publicados em livros de viagem, constituem um dos capítulos mais interessantes da história da iconografia latino-americana do século 19.

Em certos casos emblemáticos, como o de Miguel Hidalgo (Ades, 1997: 24), de José Artigas (Costa, 2013) e de Maria Quitéria de Jesus, foi em litografias que apareceram as primeiras representações visuais dos líderes e combatentes das Independências latino-americanas. Mas é preciso salientar que essas gravuras, e muitas outras que circularam na América no século 19, chegaram na América via Europa, onde havia tecnologia e artistas especializados. Mesmo quando havia litógrafos experientes, como era o caso de Charles Simon Pradier na Corte do Rio de Janeiro, os recursos técnicos ainda eram raros para se trabalhar até meados dos Oitocentos. Em todo caso, estampas, retratos, vistas, cenas alegóricas etc. eram comercializados pelo território desde antes da independência (Lee, 2017). O aspecto original desses primeiros retratos acabou levando estas obras ao centro de acalorados embates artísticos acerca do seu valor de verdade – ainda que em muitos casos os artistas não tenham sequer feito os retratos ao natural, isto é, com o modelo posando ao vivo.

A disputa pela efígie de José Artigas é um caso notável e que, ainda hoje, mobiliza os artistas uruguaios. Artigas en la puerta de la Ciudadela, quadro que Juan Manuel Blanes começou a pintar em 1884 e que não terminou até sua morte, em 1901, é o retrato mais famoso do herói. Blanes, além de outros artistas que vieram depois dele, dedicou boa parte da sua vida a imaginar o rosto de Artigas. Seu referente principal era uma gravura representando o perfil do herói aos oitenta anos, no momento de seu exílio no Paraguai. No entanto, o autor do retrato, o médico e naturalista francês Alfred Demersay, descreve-o no livro em que a efígie foi publicada como um “chefe de ladrões da mais formidável espécie”, dentre outras caracterizações negativas (Costa, 2013: 4).

É esse retrato que era considerada a imagem verdadeira de Artigas, a despeito das intenções claramente demeritórias do artista em relação ao retratado. No entanto, vale levantar aqui a questão de Laura Malosetti Costa: “que classe de verdade envolve essa imagem”? (Costa, 2013: 2). A partir dessa primeira e única imagem tirada ao natural, o Museu Histórico Nacional do Uruguai dedica uma de suas principais sala aos retratos póstumos e aos estudos de rosto do general Artigas produzidos em diferentes contextos e por diferentes artistas. Nesse caso, o esforço algo obsessivo de imaginar o rosto do herói jovem e idealizado está intimamente relacionado ao desejo de dar um corpo sensível à noção abstrata de nação uruguaia.

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Imagem 3: Artigas en la puerta de la ciudadela. Juan Manuel Blanes. Óleo sobre tela, c.1884. 182 x 119 cm. Museu Histórico Nacional do Uruguai, no depósito da Casa de Governo.

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Imagem 4: Artigas [detalhe]. Alfred Dermersay (desenho) e C. Sauvaget (litografia). Litografia sobre papel, 1865. 41 x 25 cm. Museu Histórico Nacional do Uruguai (Casa de Fructuoso Rivera).

O caso de Policarpa Salavarrieta, popularmente conhecida na Colômbia como La Pola é emblemático pela notória e rápida fortuna de suas representações visuais (Carrasco, 2012). Ela aparece, poucos anos após sua execução pelos espanhóis, em peças de teatro e na pintura - culminando, contemporaneamente, na telenovela. La Pola foi uma costureira que, pelo seu trânsito na casa de realistas, atuava também como espiã para os conspiradores da Nova Granada. Acabou sendo capturada, presa e condenada à morte. Apenas oito anos após sua execução, Salavarrieta aparece naquele que é considerado o seu primeiro retrato, Policarpa Salavarrieta marchando ao suplício (1825). Na pintura anônima, a heroína é conduzida ao estrado de madeira onde será colocada de joelhos, em praça pública e à vista de todos, para ser executada. Logo abaixo, foi escrita uma curta epígrafe, como em um ex-voto, prática comum na iconografia do período (Bretos, 2004: 32). Beatriz González chama atenção para o fato de esta obra ser “um claro antecedente da pintura de Fernando Botero” (González, 1996: 31), marcada pelas formas voluptuosas.

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Imagem 5: Policarpa Salavarrieta marchando ao suplício. Óleo sobre tela, c. 1825. 74,5 x 93,5 cm. Museu Nacional da Colômbia.

Ainda no contexto neogranadino, o óleo sobre tela que Pedro José Figueroa pintou em 1819, Simón Bolívar libertador e pai da pátria, é um retrato do herói como presidente da República. Foi presenteado ao próprio Bolívar na principal praça de Bogotá, após a batalha de Boyacá, em agosto daquele ano. Há um elemento fantasmático na obra que é indicativo das disputas políticas que se seguiam no período. Ao girar a tela noventa graus à direita, um pentimento[6] se revela na altura da coxa da alegoria da América que, no quadro, faz a vez de alegoria da pátria. Àquela altura, não estava claro qual desfecho que teria a batalha de Boyacá e o pintor, que trabalhava para o vice-reino restaurado, possivelmente estava executando uma encomenda para os realistas. Vê-se claramente que se trata de um rosto masculino, mas os autores divergem se seria o do general Pablo Morillo ou do rei Fernando VII. Qual um palimpsesto, o quadro que celebra Bolívar como libertador da Nova Granada guarda uma alusão direta ao poder espanhol (Chincagana-Boyana, 2011: 157-161). O retrato demonstra de modo muito claro que os embates políticos eram travados também sob a superfície das telas.

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Imagem 6: Bolívar libertador e pai da pátria. Pedro José Figueroa. Óleo sobre tela, 1819. 125 x 95 cm. Museu Quinta de Bolívar, Bogotá, Colômbia.

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Imagem 7: Detalhe de Bolívar libertador e pai da pátria. Pedro José Figueroa. Óleo sobre tela, 1819. Museu Quinta de Bolívar, Bogotá, Colômbia.

II. Mulheres e armas

“Acabo de receber o retrato que o sr. Earle, um jovem artista inglês brilhante, esteve pintando da Senhora Alerez [?], Dona Maria de Jesus." (Graham, 1824: 302). Maria Graham (1785-1842), nessa passagem de seu Journal of a voyage to Brazil and residence there, during part of the years 1821, 1822 and 1823, refere-se a um desenho que Augustus Earle produziu de Maria Quitéria no período em que a baiana esteve na Corte do Rio de Janeiro[7], onde ela aportou para receber a comenda da Imperial Ordem do Cruzeiro em 1823. Quitéria havia combatido os portugueses na chamada Guerra de Independência do Brasil na Bahia (1822-1823), após fugir de casa travestida como homem. Segundo o comandante José Joaquim de Lima e Silva, que relatou ao imperador as façanhas da baiana em ofício de 24 de julho de 1823, ela

ao grito da Pátria em perigo, desamparou seus Pais, assentou praça de Soldado, e pegou em armas para sua defesa. Esta mulher tem-se distinguido em toda a campanha com indizível valor, e intrepidez. Três vezes que entrou em combate apresentou feitos de grande heroísmo, avançando de uma, por dentro de um rio com água até os peitos, sobre uma barca, que batia renhidamente nossa Tropa. O General Labatut conferiu-lhe as honras de 1º Cadete, e como tal tem sido considerada no Batalhão nº 3 do Exército Pacificador. (Silva, 1823)

Maria Graham, que demonstra grande interesse por Quitéria em seu diário, encomendou um retrato da baiana a Augustus Earle, um artista inglês que morava no Rio de Janeiro desde 1820. Mais tarde, notabilizou-se por ser o artista da expedição do HMS Beagle, navio em que viajava o jovem Charles Darwin, e que trouxe Earle pela segunda vez ao Brasil em 1832 (Martins, 2001: 126-127). A obra brasileira de Earle é composta, sobretudo, de aquarelas de cenas construmbristas, paisagens e alguns retratos e autorretratos. O artista, que frequentou informalmente as aulas da Royal Academy de Londres, é também autor da imagem que estampa o frontispício do livro de Graham, representando um mercado de africanos escravizados no Rio de Janeiro. Tanto essa cena urbana, quanto o retrato de Maria Quitéria foram gravados posteriormente por Edward Finden em Londres. Infelizmente, não há informações precisas sobre a localização do original do retrato publicado no livro. Conhecemos apenas um esboço representando o busto da heroína e que é, possivelmente, a obra citada textualmente por Graham no Diário.

O retrato que foi efetivamente publicado representa Maria Quitéria de pé, fardada e segurando o cano de um mosquete. O cabelo cortado bem curto emoldura seu rosto em três quartos de perfil. Alguns chumaços cacheados escapam do capacete, um possível indício de feminilidade na figura. Ela sorri vagamente, olhando para seu interlocutor de viés. É uma mulher branca com as maçãs do rosto ruborizadas. O rosto sereno contrasta com os soldados ao fundo que combatem inimigos dos quais vemos apenas as silhuetas. Em seu peito esquerdo, ostenta a insígnia da Imperial Ordem do Cruzeiro, que havia recebido do imperador dias antes da feitura do retrato[8]. Sua pose e aspecto plácido guardam algo do motivo dos anjos com espingarda, bastante recorrente na Escola Cusquenha de pintura do século 17. Além disso, sua atitude expressa algo das representações de tipos humanos muito comuns na produção de viajantes e também nos manuais militares da época.

A saia quadriculada, possivelmente feita de camelão (Reis Jr., 1953: 47), um tecido de pelo de cabra ou lã impermeável, cai por cima da calça branca. É de se notar a estampa que destoa da austeridade dos padrões militares, denotando certo grau de improviso na composição da farda. O sutil balançar da barra do saiote empresta algum movimento a Quitéria, que está um tanto inerte, além de destacar a saia na composição. É difícil precisar historicamente em que condições a saia apareceu no fardamento. Há especulações de que se tratou de uma imposição do comando militar ou mesmo de uma escolha deliberada da combatente. Ainda que as fontes consultadas nesta pesquisa, especialmente o livro de Graham (1824), não amparem qualquer uma das hipóteses, seus biógrafos tentam preencher essa lacuna de informações recorrendo a fatos sem comprovação documental (Vesentini, 1979). Sobretudo baseado no diário de Maria Graham, o que é possível afirmar é que, após fugir travestida de casa sob a identidade de José Medeiros (nome do cunhado), Maria Quitéria se alistou como homem no Batalhão dos Periquitos, que estava estacionado na cidade de Cachoeira. É bastante provável que a saia tenha aparecido a partir do momento em que o disfarce masculino foi desmanchado.

A saia cumpria a função de revelar a identidade de gênero de Quitéria, a despeito da conveniência de se combater com tal peça de roupa. O uniforme é, assim, um modo de regular a performance de gênero de Maria Quitéria. Isto é, como combatente, não bastaria que Maria Quitéria vestisse a farda do Batalhão dos Periquitos tal qual seus companheiros homens, era necessário identificá-la através desse figurino de mulher.

A ideia de figurino deriva do conceito butleriano de que o sujeito faz seu gênero através de “atos performativos”. Judith Butler, baseada na fenomenologia e nas teorias da performance e da representação, descreve como a identidade de gênero constitui-se como uma repetição estilizada de atos performativos, isto é, “o modo mundano como os gestos corporais, os movimentos, e as encenações de vários tipos constituem a ilusão de um eu permanentemente definido pelo gênero” (Butler, 2011: 70). Os atos são conformados por normas que ditam como deve ser interpretado o gênero o qual cada corpo é designado a performar. Ao longo do tempo, a sedimentação dessas normas “tem produzido um conjunto de estilos corpóreos, os quais, de uma forma reificada, surgem como configuração natural de corpos em sexos que existem numa relação binária com o outro.” (Butler, 2011: 77).

As possibilidades de transformação desse regime normativo residem num tipo de repetição diferente dos atos, “na quebra ou repetição subversiva desse estilo” (Butler, 2011: 70). Sendo um sistema de regulação fundamentalmente punitivo, a performatização de atos disruptivos está sujeita a sanções sociais que visam a corrigir a performance do sujeito. Ainda assim, “[h]á contextos e convenções sociais nos quais certos atos não só se tornam possíveis como também concebíveis enquanto atos. A transformação das relações sociais torna-se, então, uma questão de transformar as condições sociais hegemônicas, e não os atos individuais que são gerados por essas condições.” (Butler, 2011: 79).

De fato, Maria Quitéria, ao fugir de casa para lutar na guerra, certamente subverteu o encadeamento das peças que constituiriam a sua existência enquanto mulher. Mas sua ação isolada não foi capaz, por exemplo, de ampliar o acesso das mulheres às Forças Armadas brasileiras naquele momento. Dessa forma, a guerra aparece como um contexto historicamente possível de se performar o gênero feminino de modo radicalmente distinto do regime normativo. De fato, segundo Linda Nochlin, o caso da “mulher guerreira” é “o exemplo mais extremo de um ser feminino como agente autônomo do seu próprio destino” (Nochlin, 1999: 35).

Em termos visuais, o caráter disruptivo reside no fato de Maria Quitéria estar representada como uma guerreira. Como tal, os marcadores de gênero indicariam para uma performance do gênero masculino (a calça, a arma, a guerra). Mas a saia torna inequívoca a interpretação de que essa figura se trata de uma mulher. Essa peça da indumentária pode ser entendida então como uma punição no sentido butleriano, uma tentativa de corrigir o desvio de ordem performativa. Isso fica mais claro ao contrapormos a imagem de Quitéria com o retrato equestre de Madame de Saint-Balmont, pintado em 1643 por Claude Deruet. Para Nochlin, este quadro dissolve o paradoxo da mulher guerreira ao apresentar uma figura perfeitamente travestida, cujos elementos iconológicos principais ocultam os significantes de feminilidade. A saia de Quitéria, ao manifestar o aspecto feminino, serve como uma espécie de velamento corretivo do aspecto subversivo da sua performance de gênero.

Mesmo a arma poderia ser lida como elemento performativo de subversão. Maria Graham escreveu que Quitéria aprendera em casa a atirar para caçar e se defender dos “índios selvagens” (Graham, 1824: 292). Havia nisso, é claro, um componente de classe que fazia com que Maria Quitéria, filha de um fazendeiro que produzia algodão e criava gado no Recôncavo baiano, tivesse acesso e soubesse manejar a armas de fogo. Nesse caso, empunhar um mosquete não se apresentaria em si mesmo como um ato diferenciado das convenções que a caracterizariam como mulher. O que chama atenção é função pública da arma como um elemento central na representação de uma mulher do século 19.

De ponto de vista da teoria butleriana, o que parece mais significativo em Maria Quitéria é a função da arma em suas mãos, que passa de uma dimensão privada (caçar e se defender) para estar a serviço da política (a Guerra de Independência). Ou seja, é o fato de atuar armada no espaço da guerra, compreendida aqui como esfera pública, que é disruptiva do ponto de vista da construção de gênero. No retrato anônimo e sem data de Juana Azurduy, líder de guerrilheiros que lutavam pela Independência do vice-reino do Rio da Prata, a espada aparece discretamente – vemos apenas sua empunhadura. No quadro, pertencente ao Museu Histórico Nacional da Argentina, o sentido bélico é muito mais evidente pela farda e pelas condecorações do que exatamente pelo fato da figura estar armada. Note-se que, no monumento a Juana Azurduy em Buenos Aires, ao ser representada em posição de combate, a espada ganhou uma proeminência que não há no retrato.

O sentido bélico também aparece no fundo do retrato, em que ocorrem duas cenas alusivas às batalhas travadas no Recôncavo. Em um plano intermediário, veem-se três figuras fardadas como a baiana (à exceção da saia, evidentemente) surgirem em meio à fumaceira dos disparos – todos empunham armas. Mais ao fundo, à beira da praia, duas outras figuras emparedam três pequenas silhuetas humanas, no que parece ser um fuzilamento. A paisagem é construída a fim de montar um quadro tropical genérico, típico na arte de viajantes. A vegetação é formada, sobretudo, por palmeiras que ocupam distintos planos no retrato, de modo a acompanhar a sinuosidade da faixa de praia que se estende por trás da figura em primeiro plano. O fundo tipicamente tropical ajuda o observador europeu (o livro foi publicado na Inglaterra) a situar geograficamente Maria Quitéria no “Novo Mundo”.

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Imagem 8: Dona Maria de Jesus. Augustus Earle (desenho) e Edward Finden (litografia). Litografia e aquarela, 1824. 25 x 19.2 cm. Coleção Anne S. K. Brown da Biblioteca da Universidade Brown, Providence, Estados Unidos.

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Imagem 9: Uma soldada da América do Sul. Augustus Earle. Aquarela, 1823. 17 x 13 cm. Coleção Rex Nan Kivell da Biblioteca Nacional da Austrália, Canberra.      

III. Uma imagem do povo

O retrato de Augustus Earle foi levado à tela pelo artista italiano Domenico Failutti em 1920, sob encomenda do diretor do Museu Paulista de São Paulo, Affonso Taunay. O retrato havia sido comissionado como parte do projeto decorativo que Taunay empreendeu com vistas a comemorar o centenário da Independência do Brasil em 1922. A obra estava destinada ao prestigioso Salão de Honra, que abrigaria outros retratos dos chamados “vultos da Independência” ladeando o famoso quadro de Pedro Américo, Independência ou morte! (1888), que estava ali instalado desde 1890. Failutti também foi encarregado de outros dois retratos femininos ligados à emancipação política brasileira: o da abadessa Joana Angélica, mártir da Independência que foi abatida pelos portugueses na porta do convento que dirigia em Salvador, Bahia; e o de Dona Leopoldina, primeira imperatriz do Império do Brasil.

O projeto narrativo de Affonso Taunay para remodelar o Museu Paulista, que passaria de um museu eminentemente de história natural para um de história nacional, pressupunha uma série de encomendas de grandes retratos e monumentos. O ponto é que o projeto de Taunay pressupunha uma visão historiográfica positivista em que o documento reinava soberano (Brefe, 1999: 60) (Anhezini, 2002-2003). O diretor, que também era historiador, acreditava que se se valesse de fontes visuais consideradas “fidedignas”, poderia produzir obras que seriam, ao mesmo tempo, verdadeiros documentos históricos (Brefe, 2002-2003: 91). Nessa perspectiva, as questões próprias do campo da imagem seriam rebaixadas ao nível do meramente documental.

Esse ponto de vista teria levado, inclusive, à recusa de artistas egressos da Escola Nacional de Belas-Artes, como Rodolfo Amoedo, em participar da empreitada, conforme atesta a troca de missivas entre o artista e Taunay (Simioni, Lima Jr., 2018: 39). A indicação de Failutti, por sua vez, teria partido do próprio presidente do estado de São Paulo, Washington Luís (Taunay, 1926: 692). No caso do retrato de Maria Quitéria, a matriz escolhida por Taunay foi justamente a gravura de Augustus Earle publicada no livro de Maria Graham, conforme escreveu em um relatório ao então secretário do interior: “reproduziu o Cav. Failutti, em pintura a óleo, a tão conhecida e popular gravura de Miss Graham (sic) representando a heroína baiana da Campanha da Independência, Maria Quitéria de Jesus” (Taunay, 1926: 733). É importante salientar que é bastante provável que a gravura utilizada como base não fosse uma das coloridas (ou “iluminadas”, como chamavam à época) por Edward Finden, como a que reproduzimos neste artigo, mas umas das impressões em preto e branco que também circulavam no período.

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Imagem 10: Maria Quitéria de Jesus. Domenico Failutti. Óleo sobre tela, 1920. 155 x 253,5 cm. Museu Paulista da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Assim como no caso de Artigas, a perspectiva de Taunay era de que a estampa representaria Maria Quitéria de forma verdadeira, numa relação de transparência com o real. O dado curioso é que Failutti alterou significativamente a composição do rosto em comparação com a retrato de Earle, possivelmente seguindo as recomendações de Taunay. Como nota Carlos Lima Jr., o pintor italiano intensificou aspectos faciais tidos como mais femininos (Taunay, 2016: 134). Do nosso ponto de vista, a mudança substancial diz respeito aos fenótipos que demarcam etnicamente a figura. Assim, os olhos, mais negros e profundos, adquirem um formato achatado. O nariz está mais proeminente e destacado. Os lábios, outrora finos e discretos, se avolumam e destacam-se pela cor enrubescida que contrasta com a pele. Esta foi colorida com um tom acobreado, próximo àquele característico dos indígenas. Em síntese, verificamos mais nitidamente o que Maria Graham definiu, ao descrever Quitéria, como “as mais acentuadas características dos índios”. É preciso que se registre que a própria inglesa afirma que a mãe e o pai eram ambos portugueses, mas mesmo assim vê traços indígenas especialmente nos olhos e na testa (Graham, 1824: 292).

Taunay certamente leu e interpretou como verossímil a passagem do diário de Graham a respeito da fisionomia de Quitéria, que a caracteriza com aspecto de pessoa indígena. Mas, como já foi dito, não é possível afirmar que o diretor do museu tivesse consciência dos retratos coloridos. É de se supor que houvesse creditado à palavra de Graham o valor de verdade que tanto buscava em suas fontes para os quadros. Essas transformações evidenciam as intenções de Taunay em colorir o Salão Nobre com tons “mais populares”. Dito de outro modo, o esforço parece ter sido em caracterizar uma figura essencialmente brasileira, isto é, de aspecto mestiço, ainda que inclinado para o fenótipo nativo. Dessa forma, Taunay fazia estar presente uma única figura não-branca entre os retratos do Salão de Honra e uma das raras mulheres.

A respeito da opção por “indianizar” Maria Quitéria, Carlos Lima Jr. aventa a possibilidade de o diretor supor uma pele queimada pelo sol forte da Bahia, o que traria verossimilhança à representação, em contraste com a pele alva de Dona Leopoldina, cujo retrato compõe a mesma galeria do museu (Lima Jr., 2016: 134). Outra hipótese seria a de que, consciente ou não, a escolha de Taunay recuperava o movimento indianista que instrumentalizou a figura do indígena como emblema nacional brasileiro no século 19. Dessa vertente, herdamos clássicos da literatura brasileira como os romances de José de Alencar, O guarani (1857) e Iracema (1865). Além de quadros célebres como O último tamoio (1893) de Rodolfo Amoedo e Iracema (1884) de José Maria Medeiros.

Paralela à vertente indianista na arte brasileira, em boa parte da América Latina houve a proliferação de imagens que relacionavam às nações recém-fundadas às imagens derivadas dos povos originários do território, notadamente através de alegorias da América (Chincagana-Boyana, 2011: 166). Se no período colonial, grosso modo, essas imagens representavam, junto às da África, uma exótica, primitiva e inferior porção do globo terrestre, a partir de certo momento, passaram a servir à auto-referência dos povos americanos, suavizando-se o sentindo pejorativo de que eram anteriormente imbuídas (Chincagana-Boyana, 2011: 147-150). É possível afirmar que esse modelo tão vastamente difundido opera, ainda que subterraneamente, na representação de Maria Quitéria. Podemos também aproximar a análise de um modelo visual bastante próximo ao imaginário independentista na Bahia, que gira em torno da adesão popular na campanha de libertação. Os símbolos da participação dos baianos na guerra, desde as primeiras décadas após a Independência, são as figuras de dois caboclos que saem às ruas de Salvador no desfile cívico de Dois de Julho, data em que a Bahia comemora a Independência do Brasil (Kraay, 1999; 2003).

As esculturas dos chamados Caboclos de Julho apresentam características comuns às alegorias da América que foram descritas no tratado Iconologia, publicado em 1613 por Cesare Ripa, especialmente a figura masculina. O italiano defendia que as representações da América deveriam seguir os seguintes preceitos: uma mulher nua, de pele escura, ornada de plumas coloridas e armada com arco e flechas. Sob seus pés, deveria estar representada uma cabeça humana flechada, demonstrando a natureza canibal dos povos americanos, e um lagarto de tamanho desmesurado (Ripa, 2002: 108-109). No caso baiano, a escultura do Caboclo, que desfila desde a década de 1820, segura com uma mão uma lança apontada para o dragão sob seus pés, que representa a tirania portuguesa, e com a outra a bandeira do Brasil. O teor belicoso da figura masculina teria impulsionado na década de 1840 o surgimento da Cabocla, uma imagem mais apaziguada, que atua como porta-bandeiras (Kraay, 1999: 60).

É possível que Taunay conhecesse ao menos os relatos do tradicional desfile dos Caboclos de Julho em Salvador. Essas esculturas já desfilavam pelas ruas da cidade há cem anos quando o quadro foi pintado e seguem, até hoje, incorporadas à tradição cívica (e religiosa, em certa medida) baiana. O fato é que o diretor do museu se interessava pelo desenrolar do processo da Independência na Bahia e mantinha diálogo com o intelectual baiano Teodoro Sampaio sobre isso. Na missiva que o diretor recebeu em São Paulo, a 30 de setembro de 1919, Sampaio fez questão de destacar a “variedade de tipos e raças” das tropas brasileiras na Guerra de Independência na Bahia, compostas por “levas de sertanejos”, “alguns índios [...] armados de arco e flecha” e “negros dos engenhos d’açúcar”, em suma, eram “os mais variados aspectos com referência à população nacional” envolvidos na campanha (Sampaio, 1919). Maria Quitéria representada de modo próximo aos indígenas possibilitaria, assim, uma imagem de heroísmo que emerge do povo, demonstrando que, ainda que profundamente elitista, a Independência do Brasil era também uma aspiração popular. Ainda assim, é sintomático que seja essa a única figura que não é branca no Salão de Honra e apenas a segunda feminina.

É interessante notar outros dois aspectos alterados entre a gravura de Earle e a pintura de Failutti. O primeiro diz respeito ao apaziguamento das cenas bélicas, traço que estava em consonância com o projeto decorativo de Taunay para o Salão Nobre após 1920 (Lima Jr., 2016: 133). São eliminadas as cenas de guerra que Augustus Earle havia incutido nos planos ulteriores da imagem, fazendo referência à atuação bélica de Maria Quitéria, já evidenciada na sua indumentária militar e na arma que ostenta apoiada no chão. A outra mudança diz respeito à natureza da paisagem, que se torna algo idílica e sem qualquer outra presença humana. A praia ornada de palmeiras ao fundo dá lugar aqui à vastidão exuberante do Recôncavo baiano, em que se vê correr um rio em direção ao horizonte. Seguindo o relato de Maria Graham, poderia ser o rio do Peixe, que atravessava a fazenda do pai de Quitéria. Ou ainda o notório rio Paraguaçu, que margeia a cidade de Cachoeira e remete ao local para onde Maria Quitéria fugiu e se apresentou travestida de homem para lutar.

Considerações finais

          A análise da iconografia relacionada aos mitos de origem das nações latino-americanas oferece chaves importantes para refletir sobre as implicações das imagens nos embates em torno dos projetos nacionais. Os retratos, fundamentalmente, estavam implicados no esforço de corporificar determinadas narrativas que elegeram homens e (algumas poucas) mulheres como próceres da Independência. Os retratos ganharam assim status privilegiado nas galerias de panteões nacionais. Não raro, os retratos de heróis eram os centros de debates artísticos na esfera pública. Produzidas em contextos os mais distintos – e adversos, em vários casos –, essas imagens foram sendo imbuídas de certo aspecto devocional, como objetos de um culto cívico (em que os museus seriam os templos por excelência).

É certo que outros modelos visuais também agiram sobre a produção dos retratos de heróis e heroínas. No caso de Maria Quitéria, lançamos mão de metodologias transdisciplinares, como os estudos de gênero, para montar uma análise iconográfica a partir da noção de gênero como encadeamento arbitrário de atos performativos. A partir disso, problematizamos como determinados elementos reforçam o caráter subversivo da figura da mulher guerreira.

A representação étnica de Maria Quitéria, originalmente como uma mulher branca no século 19, mas descrita com os “mais acentuados traços dos índios” (Graham, 1824: 292) na literatura de viagem, permaneceu um problema até o início do século 20, quando se comemorou o primeiro centenário da Independência do Brasil. O pintor, Domenico Failutti, valeu-se naquele momento da palavra de Maria Graham, num esforço de fazer sobressair tons mais populares na galeria de próceres do Museu Paulista. O retrato de Quitéria passou a ser, assim, o único a representar uma figura que destoa da branquitude hegemônica naquele panteão. O argumento para a ideia de que uma “indianização” da retratada traria o povo para dentro do Salão de Honra foi embasado, fundamentalmente, na herança visual das alegorias da América, que desembocou nas esculturas de Caboclos da Independência, que desfilam anualmente em Salvador na data cívica de 2 de julho. Essas figuras são, elas próprias, alegorias da participação popular na Guerra de Independência na Bahia, da qual Maria Quitéria é um dos grandes personagens.

 

Notas de fim

[1] Trecho do panfleto publicado em 1812, no México, sob o título de Llamado a las mujeres a luchar por la Independencia. Ainda que anônimo, é comumente atribuído a Josefa Ortiz de Domínguez. Mulher de posses, atuou como informante dos conspiradores, como Miguel Hidalgo. O que levou-lhe a ficar presa por longos períodos em conventos da Nova Espanha. Após a conquista da Independência, continuou a manter atividades políticas (Prado, 1999). Seu retrato anônimo e sem data compõe o acervo do Museu Nacional de História do México.

[2] Estrofe de Histórias para ninar gente grande, samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira, que venceu o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro em 2019. A composição é de Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino.

[3] Este trabalho é dedicado à memória de Marielle Franco.

O autor agradece a Marcelo Campos, Leila Dazinger, Vera Beatriz Siqueira, Lucas Feres, Weder Ferreira e Carlos Lima Jr. pelas diversas contribuições ao longo da pesquisa.

[4] A partir daqui, as traduções do espanhol e do inglês são do próprio autor.

[5] Ver Nochlin, 1999, Pollock, 2003 e Reiman; Sáenz, 2007.

[6] Pentimento equivale a um sinônimo para “arrependimento” e se refere a uma alteração na composição de um quadro que já estava sendo pintado. Ele pode ser revelado através da restauração, luz infravermelha, raio X etc., mas, nesse caso, nota-se a olho nu.

[7] Possivelmente isso ocorreu entre 29 de agosto, quando Graham conheceu Maria Quitéria, e 24 de setembro de 1823, no dia em que isso foi registrado em Journal of a voyage to Brazil.

[8] Note-se que a insígnia representada na gravura diverge daquela projetada por Jean-Baptiste Debret em 1822 (Bandeira; Lago, 2007: 355).

 

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Pour citer cet article

Nathan Gomes, « A la guerra Americanas: Questões de gênero e etnicidade nos retratos de Maria Quitéria de Jesus », RITA [en ligne], N°12 : septembre 2019, mis en ligne le 12 septembre 2019. Disponible en ligne http://revue-rita.com/notes-de-recherche-12/a-la-guerra-americanas-questoes-de-genero-e-etnicidade-nos-retratos-de-maria-quiteria-de-jesus-nathan-gomes.html